O tema da privatização volta a ganhar explícita prioridade na agenda do BNDES. Quem prestou um pouco de atenção ao discurso da nova presidente do Banco, ou à imprensa recente, não tem dúvidas a respeito. A hora não poderia ser mais propícia para um balanço da experiência nacional com essa política de reforma estrutural. Por isso, o primeiro seminário proposto pela nova Diretoria da AFBNDES – que será realizado na próxima quinta-feira (14), das 10 às 13h, no auditório do 8º andar do Edifício Ventura Oeste – consiste num reexame crítico da privatização: Será essa a melhor alternativa para o Brasil?
Contaremos, no evento, com a presença de três especialistas no tema: o professor Carlos Medeiros, do Instituto de Economia da UFRJ, o pesquisador da Fiocruz Minas e relator sobre Água e Saneamento na ONU, Leo Heller, e Gustavo Gindre, do Coletivo Intervozes. Também serão convidados para o seminário representantes da Diretoria do Banco e dos Departamentos de Saneamento (DESAN) e Telecomunicações (DETIC), que terão espaço para intervenções e perguntas antes da fala ser aberta ao público.
Como aquecimento para o debate, apresentamos, a seguir, um breve resumo das análises desenvolvidas por nossos convidados. Nunca é demais lembrar que as interpretações que seguem são de responsabilidade dos organizadores do seminário. Os que tiverem interesse em conhecer mais profundamente as ideias dos palestrantes podem consultar os textos originais – e com esse propósito estão presentes, no final desta matéria, os links das publicações que foram consultadas para apresentar o resumo abaixo.
Análises
• Carlos Medeiros faz um balanço da experiência latino-americana com as privatizações nos anos 1990. A partir da caracterização das especificidades do processo de privatização que ocorreu na América Latina comparativamente ao que se deu em outras regiões do mundo, Medeiros confronta a plausibilidade das explicações clássicas que explicariam a privatização, a saber, a preocupação com eficiência e necessidade de recursos financeiros. Como explicação alternativa, o professor propõe a atuação de uma "coalização distributiva" – termo tomado emprestado ao cientista político Mancur Olson a fim de descrever a atuação de um grupo que busca o enriquecimento a partir da redistribuição da riqueza existente ao invés de pelo processo de geração da mesma. No caso da privatização latino-americana, essa coalização distributiva teria sido formada como resultado da crise da dívida nos anos 80 e da acumulação de divisas por parte de uma elite doméstica articulada com importantes instituições financeiras internacionais. A privatização seria o resultado da atuação dessa coalisão, tendo em vista a remodelar o Estado segundo seus interesses. Líderes políticos de diferentes matizes ideológicos percebem a importância dessas novas coalizões e se alinham num padrão que se repete por toda a região.
A visão de Medeiros traz um contraponto interessante com análises que propõem a privatização como forma de "desprivatizar" o Estado via eliminação de organizações potencialmente capturáveis. O que ele propõe, em última análise, é que a privatização latino-americana não pode ser entendida sem compreender que ela foi, em primeiro lugar, produto dessa captura do Estado!
• O processo de privatização das telecomunicações é particularmente importante porque amplamente considerado um caso bem-sucedido. Teremos uma revisão crítica dessa experiência, com foco na situação da maior empresa nacional do setor. Gustavo Gindre recentemente analisou para a revista Carta Capital a história que levou a Oi chegar a atual situação de concordata e as alternativas que estão diante da empresa. A narrativa de Gindre começa com o modelo adotado para a privatização da Telebrás em 1998 e segue com as principais decisões tomadas pela empresa ao longo de sua história. A narrativa do especialista é permeada de histórias de captura estatal, seja das agências reguladoras, seja da ação de "esquartejamento" da empresa por seus principais acionistas. Note-se que Gindre ilustra um ponto para o qual o Nobel de Economia Josef Stiglitz já havia dado ênfase no seu livro Globalização e seus descontentes. No balanço crítico da privatização dos anos 90, Stiglitz usa o termo "strip asset" para descrever uma das possibilidades que podem emergir, segundo sua visão, de uma privatização malfeita em contraposição com os resultados esperados pelos advogados da privatização de mais investimento e crescimento.
• Se o setor de telecomunicações é considerado um caso de sucesso, o setor de saneamento tem a relevância de ser a aparente "bola da vez". O setor foi destacado como prioridade pela nova presidente do BNDES em sua posse, e não faltam defensores do condicionamento da renegociação da dívida dos estados à venda das empresas estaduais de saneamento. Leo Heller aborda o quadro do saneamento no Brasil e as possíveis saídas, em particular a alternativa da privatização ou concessão privada dos serviços de água e saneamento. Segundo o pesquisador, há amplo espaço para a participação privada no saneamento, mas "ao apostar na prestação privada dos serviços, atividade-fim, para assegurar a universalização, o governo brasileiro ignora todo o acúmulo de formulações teóricas e evidências empíricas sobre a privatização de um setor caracterizado como monopólio natural, como o de saneamento. Diversas experiências, em várias partes do mundo, mostraram as limitações do modelo e seus fracassos".
Teremos um balanço da privatização do ponto de vista macroeconômico e setorial. Será uma grande oportunidade para se informar e debater um tema que concerne a todos os funcionários do BNDES. Se temos que manter o compromisso com o desenvolvimento, não deveríamos nos satisfazer apenas com a lisura dos processos que envolvam diretamente a operação do Banco, mas também com a substância da política que apoiamos. Esperamos que o seminário do dia 14 ajude nossa reflexão coletiva.