Carlos Pinkusfeld Bastos
Presidente do CICEF
Professor do IE/UFRJ
Eu era um aluno da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro e aspirante a músico. Gostava muito de política, também, como a maioria dos jovens no início dos anos 1980 na efervescência do processo de redemocratização. Não entendia muito bem quando os políticos atacavam, com grande imprecisão, o tal “modelo econômico brasileiro”. Para mim, fez-se a luz quando comecei a ver as palestras da professora Conceição Tavares. Ou melhor, fez-se o brilho, o riso, a provocação e a ânsia por aprender mais. Para mim, ao ver suas palestras, ficou claro que era aquilo que eu queria estudar o resto da vida. E de preferência com aquela professora. Dito e feito: entrei no Instituto de Economia da URFJ e além das aulas e palestras, acabei ganhando minha orientadora de mestrado e uma amiga.
Suas aulas eram um mini-show, o tempo voava. No começo, se fossem pela manhã, então, a expectativa era a pior possível. Afinal, ela normalmente chegava resmungando com sua voz grave: “estou péssima”. Não sem razão!! Crise dos anos 1980, ascensão do neoliberalismo... Mas a “promessa” era inteiramente falsa. Minutos depois estava lá a professora, gesticulando muito, gritando, fumando desesperadamente, andando de um lado para o outro na sala... Ensinando seus queridos Kalecki, Keynes, Marx e Schumpeter, misturados com referências ao filme que tinha visto na véspera do David Byrne e que pra ela, com razão, retratavam as transformações do capitalismo norte-americano pós-anos 1980. Era muita coisa junta e misturada, tudo muito divertido; mas, mais importante: fazia todo sentido. Abria a nossa cabeça para a importante ligação entre teoria e mundo real e como essas conexões podem, e devem, ser captadas com a observação atenta das diversas formas de expressões culturais. Ter sempre um olho de economista estruturalista na vida. A honra de ser orientado pela professora foi recheada de broncas homéricas, lições inestimáveis e descobertas curiosas: como sua paixão por ficção científica. Mesmo a ruim. Num domingo que tínhamos marcado para discutir a dissertação, tive que assistir a boa parte do terceiro filme da série original do Planeta dos Macacos, sessão regada à sua inseparável Coca Cola. Acho que fazia parte do processo educacional, ainda que ela, volta e meia, reconhecesse: “Eu sei que esse filme é muito ruim!!”. Nos nossos anos de convivência, pude atestar a dimensão da sua voracidade pela leitura em geral e por ficção científica em especial. Mas não se deixem enganar pelas aparências. Mesmo a ficção científica não era apenas um espaço lúdico para descanso de uma mente brilhante. Lembro-me do seu entusiasmo em discutir Blade Runner, e como antevia um futuro distópico como consequência das contradições do capitalismo e da realidade dos anos 1980. Mais uma vez, a partir de um filme de imenso sucesso popular, encontrava espaço para dar mais uma “aula”, seguindo sua permanente orientação de partir da análise das contradições sociais e da evolução das condições materiais como forma de entendimento dos processos históricos concretos: “Como ensinou o velho barbas” [sic].
Além de famosa e querida no Brasil, Conceição também era admirada fora daqui. Durante um aula no doutorado, a também grande e querida professora Alice Amsden ficou radiante ao saber que eu havia sido orientado pela Conceição. Contou alguns “causos”, típicos da mestra, e completou: “She is crazy. I love her. Send my warmest regards when you see her”.
Quando visitei o Brasil, numas férias de verão, transmiti o abraço da professora Amsden e falei, com leve arrogância: “Poxa Conceição, tem umas coisas que a gente está estudando no curso de doutorado que eu já vi no mestrado”.
Ele deu um tapinha no meu ombro e falou com certo enfado: “Claro ué, você teve mestre”.
Tive mesmo. Obrigado professora.
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Testo originalmente publicado no Jornal da AdUFRJ, edição 2020, em comomaração aos 90 anos da professora Maria da Conceição Tavares, Professora Emérita da UFRJ e Professora Titular aposentada da Unicamp.