Celso Furtado en la CEPAL, Chile. 1957.
Em março de 2004, Celso Furtado estava em Paris quando recebeu um telefonema do ex-ministro Fernando Lyra, então presidente da Fundação Joaquim Nabuco, convidando-o para um seminário comemorativo dos quarenta anos do Golpe de 64. Celso não pôde comparecer mas se dispôs a fazer um balanço da quartelada que cassou seus direitos políticos e civis e o levou ao exílio. Seu depoimento foi publicado no livro “Na trilha do Golpe — 1964 revisitado” (org. Tulio Velho Barreto e Laurindo Ferreira, ed. Massangana, 2004). Em setembro do mesmo ano, ele ampliou a primeira versão do trabalho, estendendo-a à sua participação nos três governos anteriores a 1964, dos presidentes Kubitschek, Quadros e Goulart. Refletiu, então, sobre consequências do golpe para o Nordeste, onde a seu ver foram muito mais nefastas. Aquela era a região mais atrasada do país, onde estava em curso um vigoroso processo de mudanças, desde a nova estrutura agrária até reformas sociais apoiadas pela Igreja católica liderada por dom Helder Câmara. Dois meses depois de escrever esse texto que une memória e história, Celso Furtado morreu no Rio de janeiro, em 20 de novembro de 2004.
Rosa Freire d’Aguiar
Celso Furtado
Na história das nações são frequentes os casos de perda de rumo das elites dirigentes, com graves consequências para seus respectivos povos. É nesse quadro mais amplo que, passadas quatro décadas, pode-se fazer um balanço histórico do que ocorreu no Brasil em 1964. O golpe militar de 31 de março teve, num primeiro momento, limitadas consequências, quando não passou praticamente despercebido, em várias partes do país. Em estados como São Paulo, por exemplo, foi um golpe a mais, mas logo houve atendimento a certos interesses econômicos e a região se acomodou. No Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul a tensão foi grande, conquanto passageira.
No Nordeste, porém, onde me encontrava na época, as consequências do golpe foram muito graves, pois ali havia uma política social em andamento, e a repressão exercida desde o início liquidou com movimentos sociais de grande alcance, surgidos no decênio anterior e que prenunciavam uma ampla reconstrução de suas estruturas. O Nordeste acumulara historicamente o maior atraso social do país. A criação da Sudene, que me coube dirigir desde sua implantação em 1959 até o golpe militar, era uma tentativa do governo federal de impulsionar o desenvolvimento nessa área tão desvalida.
Assim, por dever de ofício, de 1959 a 1964 acompanhei de perto essa fase decisiva da vida nordestina. Todos nós tínhamos consciência de que a região encarava uma fase de importantes mudanças, contando para isso com o apoio de forças dentro e fora do país. Levados pelos ventos da mudança, certos líderes da classe latifundiária já aceitavam as reformas estruturais que propúnhamos, embora muitos ainda exigissem que elas fossem feitas sob seu controle. O próprio Partido Comunista já não era visto como um movimento “subversivo”. Tais comportamentos não nos surpreendiam. O importante era que o entrechoque das forças no plano ideológico ia sendo aceito como forma natural de se fazer política. Muito contribuiu para a emergência desse novo quadro o comportamento da Igreja católica, que sob a liderança de dom Helder Câmara emergiu como principal força renovadora na região. Mas talvez nenhum movimento social tenha sido mais representativo desse impulso inovador do que as Ligas Camponesas criadas pela figura singular de Francisco Julião. Elas gozavam de legítimo prestígio junto à massa camponesa.
Foram muitas as visitas que fiz às areas em que eram maiores as tensões sociais, inclusive na companhia de personalidades de prestígio internacional. Tive a oportunidade de percorrer essas áreas críticas em companhia do jornalista francês Hubert Beuve-Méry, diretor do jornal Le Monde, que em seguida publicou cuidadosa e honesta análise da realidade nordestina, em reportagens de ampla repercussão. Edward Kennedy, irmão do presidente John Kennedy, que havia manifestado simpatia pelos movimentos sociais desenvolvidos no Nordeste, esteve no Recife e, em visitas que fizemos juntos, expus-lhe em detalhes a complexidade de nosso problema agrário. Minha viagem a Washington, quando fui recebido na Casa Branca pelo presidente Kennedy, revela o grau de interesse pelo trabalho que se estava fazendo na área englobada pela Sudene.
Na gestão de John Kennedy, houve uma ala do governo americano de franco apoio às forças progressistas do Nordeste. Depois de sua morte, em 1963, deu-se uma mudança qualitativa nessa política. Seu sucessor, o presidente Lyndon Johnson, era representante de outra ala, bem mais conservadora. Basta lembrar a escalada no Vietnã que houve durante sua gestão. Os colaboradores de Johnson, desde o período anterior ao golpe, estavam bem mais próximos do líder da oposição, Carlos Lacerda. Isso me leva à suposição de que, com John Kennedy na presidência, talvez não tivesse havido o golpe no Brasil.
Convivi com os três presidentes que antecederam os militares: Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart. Já desde o governo de Juscelino, medravam certos indícios de preparação de um golpe. Hoje, com o recuo que quatro décadas propiciam, é possível perceber sintomas inequívos de que algo anormal — antidemocrático — estava se gestando. Forças muito importantes foram se mobilizando, se articulando cada vez mais. Porém, conforme a tradição brasileira, também havia, no seio desses governos, quem resistisse aos desígnos dos possíveis golpistas, como se viu nos episódios de Aragarças e Jacareacanga.
No governo de João Goulart, em que fui também ministro do Planejamento, esse quadro se agravou. Não foram muitas as conversas longas que tive com Jango, mas sempre lhe disse claramente o que pensava. Lembro-me de que, num momento crucial de fins de 1963, início de 1964, disse-lhe: “É preciso que o senhor aceite a hipótese de que Carlos Lacerda venha a ser o seu sucessor”. A reação dele foi brusca e imediata: “Isso nunca. Esse homem foi o assassino do doutor Getúlio”. Por temperamento, Jango era um homem que buscava a acomodação, mas nesse caso sua resposta foi inequívoca. De um lado, ele deixava claro que não passaria o poder “ao assassino” do presidente Getúlio Vargas; de outro lado, não tinha força suficiente para impedir a posse de Carlos Lacerda, na eventualidade de sua eleição. Daí, penso eu, que Jango tenha cogitado aumentar seus poderes, por meio do projeto enviado ao Congresso para se implantar o estado de sítio, o que acabou fracassando. Tal iniciativa, tomada poucos meses antes de os militares empolgarem o poder, indicava que o presidente não descartava a hipótese de se fortalecer politicamente por um caminho perigosamente antidemocrático.
Muito se especulou sobre o que teria ocorrido no Brasil sem o golpe militar de 1964. Quando os militares chegaram ao poder, o Brasil já enfrentava fortes dificuldades no exterior. Naquele momento, uma moratória negociada com os credores parecia indispensável. Internamente, encontrava-se o país em fase de recessão econômica. Tratava-se, essencialmente, de sustentar a economia para que ela não sofresse um colapso. Mas o governo carecia de forças para adotar medidas que desagradassem as classes que o apoiavam. Um exemplo dessa debilidade foi o Plano Trienal. Preparado sob minha direção em 1963 para ser apresentado à nação por João Goulart no momento do plebiscito que decidiria a volta do presidencialismo, o Plano frustrou-se em razão da incapacidade do governo de levar adiante as reformas ali indicadas.
Todavia, as dificuldades por que passava o país resultavam tanto, ou mais, de Carlos Lacerda quanto do próprio Jango. A posição do líder oposicionista à frente das forças que combatiam Goulart era de um radicalismo desvairado. Não seria, pois, um exagero dizer que a responsabilidade pela agravação da crise que permitiu o êxito do golpe coube tanto a Jango como a Lacerda. A sucessão presidencial, prevista para 1965, seria muito difícil porque o adversário principal de João Goulart era um guerreiro nato que, na hora da briga, agigantava-se mas deixava de lado os escrúpulos. Conseguiu ele, assim, convencer que o “perigo vermelho” rondava o governo. Os militares golpistas acreditaram nesse espantalho, e dele tiraram proveito. Não excluo, porém, a hipótese de que certos generais não implicados diretamente no golpe tenham sido enganados. No Recife, ao final da noite de 31 de março que passei no Palácio das Princesas, ao lado do governador Miguel Arraes e sua equipe, dirigi-me ao IV Exército, comandado pelo general Justino Alves. Perguntei-lhe claramente o que eles estavam pretendendo, e a resposta foi seca: “Queremos colocar o Arraes para fora”. O general chegou a me sugerir que se Miguel Arraes se “acomodasse” não seria perseguido. Partindo de um general e referindo-se a um governador legitimamente eleito, a proposta era imoral. Miguel Arraes, entre os governadores punidos, foi o mais sacrificado, sem a menor dúvida em consequência das pressões exercidas pelos usineiros sobre os novos donos do poder. Ironicamente, os civis que os apoiaram e acreditaram que os militares só permaneceriam dois anos no poder também foram enganados, embora muitos tenham tirado proveito da situação, em especial o grupo mineiro de Magalhães Pinto e certos grupos nordestinos ligados aos interesses do açúcar, a quem atribuo a inclusão de meu nome na primeira lista dos punidos pela ditadura, com a cassação por dez anos de meus direitos políticos.
Quaisquer que hajam sido as intenções dos autores do golpe militar de 1964, seus efeitos mais perversos, de consequências que se prolongam até hoje, são claros. O regime militar cometeu o crime de liquidar com a prática da democracia, condenando pelo menos duas gerações a desconhecerem, senão menosprezarem, os instrumentos políticos que permitem o verdadeiro desenvolvimento das sociedades. Para os nordestinos em particular, seu dano mais nefasto foi, sem lugar a dúvida, a interrupção do processo de reconstrução das anacrônicas estruturas agrárias e sociais de nosso país, numa região onde eram mais deletérios os efeitos do latifundismo e, paradoxalmente, mais profundo o movimento renovador em curso.
Rio de Janeiro, setembro de 2004.