Mauro Boianovsky nos deixou ontem, e já faz uma falta enorme. Ao longo do dia foram se avolumando mensagens das mais diversas partes do mundo nas listas de e-mails da área de história do pensamento econômico, expressando a dor com a qual tão inesperada notícia foi recebida, a grande admiração pela produção acadêmica desse brilhante professor da UnB e a falta que a sua presença fará a tantos de nós. Uma imagem sem dúvida da sua importância para a comunidade científica internacional da área, mas só um retrato pálido diante da sua relevância. Muitas homenagens certamente se seguirão. Por muitos anos, não tenho dúvida, sua extensa produção acadêmica, que fez dele um dos mais respeitados historiadores do pensamento econômico em todo o mundo, será descoberta por novos leitores e redescoberta por todos nós, que com ele convivemos e com quem tanto aprendemos. No entanto, as conversas animadas sobre suas pesquisas em andamento, o privilégio de poder ouvir seus comentários a um manuscrito a ele enviado, ou a simples alegria do convívio afável em um passeio ou à volta de uma boa mesa, tudo isso, deixa agora de existir. A medida dessa falta não se pode ainda alcançar, mas é certo que será sentida por muito tempo. Muitos como eu, que não conviviam cotidianamente com Mauro, mas que com ele se encontravam no calendário das conferências científicas mundo afora, certamente se pegarão ainda procurando por ele nos corredores ou nos intervalos do café, apenas para lembrar, dolorosamente e com uma saudade machucada, que não, que ele não virá mais.
Escrever esta nota de pesar (e de saudade), pela partida abrupta de Mauro Boianovsky para o Centro Celso Furtado, é também a oportunidade de marcar, ainda que apenas em algumas rápidas pinceladas, a importância da análise de Boianovsky sobre a obra de Furtado e acerca de como essa análise faz parte de um importante movimento analítico na própria trajetória de pesquisa de Boianovsky. Mauro gostava de dizer de como “descobriu” a América Latina em seus estudos. Foi de fato um percurso meditado e longo e não mero acaso. Do um conjunto de trabalhos que nos anos 1990 o fizeram internacionalmente conhecido e respeitado na área da história da macroeconomia, em que se destacam análises acerca das obras de Knut Wicksell, Dennis Robertson ou David Champernowne, Mauro empreenderia a partir de meados da década seguinte um caminho de exploração sistemática e progressiva de autores latino-americanos no campo da economia, bem como acerca do encontro de outros autores e literaturas, com a América Latina. Celso Furtado é um ponto de partida fundamental para essas análises. Do convite para a redação do verbete sobre Furtado para o The New Palgrave Dictionary of Economics, que ele escreve em 2006, Mauro continuaria a pesquisa, para logo escrever a primeira versão do seu seminal artigo, “A View from the Tropics: Celso Furtado and the Theory of Economic Development in the 1950s”, apresentado em 2007 no XXXV Encontro da ANPEC, em Recife, assim como em alguns outros eventos no Brasil e no exterior naquele ano. O artigo seria finalmente publicado em 2010 na muito prestigiosa History of Political Economy, a HOPE, destino predileto de Mauro para alguns dos seus melhores artigos ao longo da carreira. A grandeza da obra de Furtado atraiu desde muito cedo analistas primorosos da história das ideias, interessados em qualificar a originalíssima conexão que ele, Furtado, foi capaz de fazer entre economia e história, a começar pelo também saudoso Francisco Iglésias (que partiu em um mesmo 21 de fevereiro, 25 anos atrás). No entanto, a forma com que Mauro escolheu enquadrar o tema, privilegiando a visita de Furtado a alguns dos mais importantes departamentos de economia nos EUA em 1951 e a análise primorosa que fez desse momento em específico, foi decisiva para iniciar um interesse renovado e crescente pelas ideias desse autor na literatura internacional de história do pensamento econômico. Nesse artigo, Mauro rastreou debates e conexões das ideias de Furtado com outros autores, examinando por exemplo hipóteses específicas, como a acerca das articulações com Alexander Gerschenkron, e examinou um vasto conjunto de fontes, conseguindo inclusive acesso à correspondência pessoal de Furtado e a outros documentos inéditos (lembre-se que Mauro foi um dos maiores entusiastas e incentivadores da abertura dos arquivos pessoais de Furtado aos pesquisadores da área). Trata-se de um texto impecável, uma verdadeira aula de história do pensamento econômico! Uma sequência impressionante de artigos se seguiria a partir daí, sendo Furtado um dos focos frequentes de análise, incluindo por exemplo o “Celso Furtado and the Structuralist-Monetarist Debate on Economic Stabilization in Latin America”, também publicado na HOPE em 2012, ou o brilhante “Between Lévi-Strauss and Braudel: Furtado and the historical-structural method in Latin American political economy”, que seria publicado no Journal of Economic Methodology em 2015. Esse último foi um dos artigos de Mauro acerca do qual tive o privilégio de conversar mais longamente com ele, em mais de uma oportunidade. Basta dizer aqui, que para além do rigor da análise e da notável erudição, esse é um dos artigos do Mauro que a meu ver melhor mostram sua inventividade, sua curiosidade intelectual e a qualidade da sua prosa. De fato, o apetite com que perseguiu a ideia de estruturalismo entre campos distintos do conhecimento, com particular atenção aos escritos de Claude Lévi-Strauss e Fernand Braudel é absolutamente invulgar em uma área do conhecimento que frequentemente (e lamentavelmente) peca pelo quanto é ensimesmada. Mauro, ao contrário, podia até se permitir a autorreferência em algumas de suas análises, mas não era nada ensimesmado.
Lembro com carinho do seminário “História do Pensamento Econômico na América Latina” que organizamos no Cedeplar/UFMG em 2013, como alguns colegas de diferentes países latino-americanos, em que Mauro fez uma apresentação com o título “Construindo a história do pensamento econômico latino-americano”. Em nossa troca de mensagens à época, ele se preocupava com o fato de que o registro poderia estar por demais autorreferenciado. De fato, estava. Mas era exatamente isto que fazia daquela fala algo tão interessante. Mauro refletia naquela apresentação sobre a historiografia e ao mesmo tempo sobre a sua incursão pessoal na temática, com viva atenção também às questões metodológicas envolvidas na análise.
Mauro esteve sempre aberto e apaixonado por novas descobertas. Suas viagens mundo afora, para além de um deleite pessoal, foram também uma ferramenta para esse aprendizado. Refletindo sobre a viagem de Douglass North ao Brasil em 1961, e definindo elementos metodológicos importantes para o estudo dos economistas e suas viagens enquanto elemento sensorial importante da produção das ideias econômicas, Mauro escreveu outro texto fascinante. Trata-se do seu “Presidential Address” de 23 de junho de 2017, quando presidiu a History of Economics Society e que seria publicado no ano seguinte no Journal of the History of Economic Thought). Nessa palestra, proferida na Duke University, Mauro acabou por também fazer referência indireta a vários de seus temas de investigação ao longo dos anos, deixando ver como o tema das viagens e das descobertas associadas a elas, foi uma constante em suas reflexões (e em sua experiência pessoal). É nesse ambiente, o das conferências (e da exploração das cidades onde essas conferências aconteciam), que sempre me lembrarei de Mauro. A última vez que nos encontramos pessoalmente foi em maio do ano passado, em uma escala em Lisboa após encontro European Society for the History of Economic Thought (ESHET) que ocorrera em Liège. José Luís Cardoso, o anfitrião, se esforçou para encontrar um bom restaurante aberto no domingo a noite e tivemos um agradabilíssimo jantar, cheio de boas lembranças e risadas. Nenhum dos três poderia então imaginar que aquele terminaria por ser um adeus. Pouco depois disto iniciei com Mauro uma colaboração em um projeto de pesquisa do CNPq. Mauro estava escalado para vir a Belo Horizonte para um workshop internacional que ocorrerá daqui um mês, mas em novembro último ele me escreveu um terrível e-mail para dizer que teria de cancelar sua participação no evento. Contou-me de sua doença e de como sua expectativa de vida havia sido reduzida drasticamente. Como foi triste ouvir aquilo. Mas Mauro foi contido e manteve-se discreto e reservado em relação à sua saúde, e eu, com esperança, tentei acreditar que tudo poderia ser diferente. Afinal, ainda muito havia por conversar, por ouvir, por aprender, mas não houve tempo, e o que há agora é a saudade.
Meus sentimentos e meu abraço condoído à família.
Vá em paz, Mauro, vá em paz, meu amigo.
Alexandre Mendes Cunha
Professor Associado
Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, 22 de fevereiro de 2024.