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Artigo | Ceci Vieira Juruá | Celso Furtado, nosso mestre. Divida Externa e Dependência


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JURUÁ, Ceci Vieira.

Celso Furtado, nosso mestre. Divida Externa e Dependência. [S. n. t.]. Rio de Janeiro, 4 dez. 2023.

 

Celso Furtado, nosso mestre. Divida Externa e Dependência

 

Ceci Vieira Juruá*
Coordenadora do Instituto Celso Furtado/
Academia Paulista de Direito

 

Em 1983 nosso estimado professor lançou o livro A NOVA DEPENDÊNCIA (Dívida Externa e Monetarismo), obra de inestimável valor teórico e prático, orientada para as Ciências Sociais e a Economia Política, recomendando analisar a dívida externa como variável vinculada ao processo de transnacionalização do sistema econômico brasileiro. Já no prefácio CF enfatizou que deveríamos aprofundar o conhecimento sobre dois temas: a inflação e o novo e sofisticado neo-protecionismo (uma novidade no plano internacional).

A transnacionalização em curso, explicou Furtado, propiciou a  emergência de um novo sistema de divisão internacional do trabalho, sistema que passou a ter como agentes controladores,  predominantemente, “firmas que atuam em âmbito planetário” (p.13).  Nesse processo, há aspectos merecedores de uma atenção específica, particular, como é o caso das  “transformações dos circuitos internos, particularmente os monetários e financeiros." Furtado ainda destacou a base ideológica que viria a predominar em futuro próximo :

... a doutrina monetarista, que ganhou ampla voga nos anos 70, desempenha importante papel como instrumento de racionalização do referido processo.  Sua face ideológica aparece a plena luz. (p.13)

O primeiro capítulo de A NOVA DEPENDÊNCIA é de uma clareza ímpar, tem por título e objeto de análise “A Dívida Externa Brasileira”. Aí,  Furtado destacou inicialmente, em nota de rodapé, a contribuição de um documento intitulado “Os desequilíbrios externos da economia brasileira e o diálogo norte-sul”, de autoria de Dércio Munhoz, professor da UNB/ Universidade de Brasilia,  e membro da “velha guarda desenvolvimentista”. O texto do prof. Dércio integrou a obra intitulada Dívida Externa e Estratégia Brasileira de Desenvolvimento Econômico e Social (Rio de Janeiro, 1981). 

Com base nesse texto, em outros estudos e nos próprios cálculos,  Furtado vislumbrou uma primeira sinalização quanto ao real objetivo da dívida externa contraída, pelo Brasil, ao final dos anos 60. Mais do que uma necessidade da economia brasileira, CF emitiu a opinião de que, na verdade, aquela captação de recursos externos visou, provavelmente, acentuar os laços de dependência histórica da economia brasileira.

É importante recordar este tema e a sucessão de eventos econômicos e políticos ocorridos a partir de 1º. de abril de 1964, pois as raízes ali lançadas foram desembocar em eventos ocorridos nos anos 80, quando surgiu entre nós uma “nova gramática do subdesenvolvimento”,[1] com novas palavras e novos temas no palco político. Entendo que houve um encadeamento lógico entre a dependência ampliada pela divida externa, conforme explica Celso Furtado,  e a metodologia da transição ocorrida nas décadas seguintes (1980-1990).

Na verdade, parece-me plausível admitir a hipótese que se preparou ao final dos anos 60, logo após o golpe de Estado civil-militar, uma armadilha para “aprisionamento” da economia brasileira, conforme se pode observar nos números da tabela abaixo.  Há clara deterioração na comparação entre a variação da dívida externa – que aumentou de US$ 48,8 milhões – enquanto nossas exportações tiveram um acréscimo de apenas US$ 17,3 milhões.  O saldo em conta corrente, tradicionalmente negativo, pois dele constam remessas de juros, lucros e royalties, mas também serviços específicos como transporte marítimo, foi multiplicado por sete (!), enquanto o serviço da dívida foi multiplicado por seis (!!!).  Nossas exportações, contudo, tiveram aumento próximo, porém inferior, a quatro. Volume e valor das exportações constituem uma variável estratégica, pois são fonte de divisas, no caso o dólar, divisas que nos permitem (ou não) cobrir o montante de importações, o serviço da dívida e o saldo negativo da conta corrente. 

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Balanço de pagamentos do Brasil

Indicadores selecionados, 1973 e 1981

 

------------------------------  1973 -------------- 1981

 

Divida externa, bruta .........12,6   ..................  61,4

Serviço da Dívida ............. -2,6   .................. -16,0

Conta corrente ................-1,7   .................. -10,9

Exportações ...................  6,2  ...................  23,5

Importações ..................  -6,2 .................... -22,3

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Fonte :  Celso Furtado, A Nova Dependência, Capitulo I, p. 47

 

 

Encurralados pela dívida e por outros compromissos externos logo no início dos anos 80, não houve clima permitindo rejeitar uma transição forçada para o neoliberalismo. Na época, o sentido da transição ficou camuflado pela introdução de um certo número de expressões e de palavras novas, que passaram a ser utilizadas no cotidiano do brasileiro, para designar situações históricas que vinham de longa data.  Refiro-me particularmente a:  ‘políticas identitárias’,  ‘combate às desigualdades’, existência de um ‘terceiro setor nem público nem privado’ e à utopia de  ‘outra democracia, participativa’!  Entrou em uso, na mesma ocasião, a figura do empreendedor, legado do economista austríaco Joseph Schumpeter, preferência ideológica da direita liberal anti-comunista e anti-marxista.

Enfim, naquela década trágica, além da hiperinflação e de uma impagável dívida externa, fomos brindados por um universo de  expressões de sentido dúbio, aplicadas à Economia e à Politica, expressões que viabilizaram a transferência para um “arquivo morto” da quase totalidade de nossas bandeiras desenvolvimentistas.  Penso particularmente na reforma agrária, no anti-imperialismo, na defesa da Soberania Nacional, e tantas outras aspirações históricas do povo brasileiro.

Na minha lembrança, Celso Furtado foi pioneiro quando discorreu, nos anos 80, sobre a transnacionalização em curso e os impactos sobre a economia    brasileira, vinculando este processo ao desnecessário endividamento externo para o qual fomos ‘empurrados’ no final da década 1970, tema objeto deste capitulo I da obra A NOVA DEPENDÊNCIA. 

Mais do que um livro, Celso Furtado nos ofereceu naquela ocasião uma tríade de obras históricas, singulares, uma quase demonstração do imenso respeito e carinho que dedicava ao Brasil e ao povo brasileiro. 

1981, O Brasil pós-“Milagre” (Coleção Estudos brasileiros; volume 54). RJ: Editora Paz e Terra.

1982 (prefácio), e  1983, A Nova Dependência (Coleção Estudos brasileiros, v. 63) RJ: Editora Paz e Terra.

1983, Não à recessão e ao desemprego (Coleção  Estudos brasileiros, v.69).  RJ: Editora Paz e Terra.

 

Voltando à análise de Furtado sobre os eventos centrais ocorridos no campo da Economia, na segunda metade dos anos 60, cabe destacar sua percepção quanto ao sentido das transformações estruturais introduzidas pelo governo resultante do golpe de Estado civil militar de abril 1964.

O processo de endividamento externo brasileiro deve ser observado no quadro mais amplo das transformações ocorridas no sistema bancário e financeiro do País a partir da metade dos anos 60.  ...  [Houve] reforma do sistema bancário (lei 4.595) ... completada pela lei do mercado de capitais (4.728) ... O instrumento privilegiado do mercado de capitais seriam os bancos de investimento que se desenvolveram consideravelmente a partir de sua regulamentação em 1966. ... [vindo] a desempenhar importante papel como instrumento de transformação do sistema financeiro brasileiro, ainda que em direção imprevista. (p.24 a 26)

Para Furtado, a  rápida recuperação da economia no período que passou à história como ‘o milagre brasileiro’, esteve vinculado ao aumento do “poder de compra dos consumidores de salários médios e altos, ao impulso de uma política de crédito” (p.22). Ele observa, no entanto, que houve segmentos da economia brasileira particularmente beneficiados pela expansão do consumo interno, referindo-se aos setores manufatureiros nos quais era crescente a participação do capital estrangeiro, e explicita “a participação de firmas forâneas no controle do capital das empresas manufatureiras, [participação que] cresceu de 20 para 30% [apoiando-se] essencialmente no autofinanciamento e na captação de poupança local.” (p.23). 

Indo adiante, Furtado destaca que, dos recursos internacionais introduzidos na economia brasileira entre 1971 e 1973, anos do ‘milagre econômico’,  “mais da metade destinaram-se a financiar a expansão dos gastos em consumo, público e privado.” (p.24)

Na sequência, Furtado observa o papel do endividamento externo e rejeita  a hipótese de que ele tenha sido contraído para fins de aceleração do  crescimento da economia brasileira,  pois a análise dos números permite concluir que 67% do incremento da dívida destinaram-se à acumulação de reservas[2] , acumulação que não poderia ser justificada, na época, pela situação do Balanço de Pagamentos nem por dívidas no exterior.

Observando os números apresentados nesta obra e leituras posteriores em outros livros de Furtado, entendo (no sentido de “suponho”) que a dívida externa brasileira, contraída ao final dos anos 60,  teve por objetivo atender exigência tradicional de órgãos internacionais , isto é, a necessidade de a moeda brasileira dispor de um lastro em moeda estrangeira forte, no caso o lastro dólar-ouro. No entanto, pouco depois, em 1971, o presidente Nixon decidiu que o lastro não teria mais lastro metálico.

Com base no raciocínio acima e na certeza de que  “poupança externa não é a mesma coisa que capacidade empresarial forânea” (p.23), a conclusão a que se chega, nesse capitulo primeiro, evidencia que os recursos daquela divida externa,  contraída ao final dos anos 60, foram utilizados no financiamento da expansão de despesas de consumo, operação facilitada, na ocasião, pela emergência de bancos de investimento.

Também estão registradas, nesse primeiro capítulo, certas decisões do recém criado Banco Central,  em matéria de emissão de letras e títulos de crédito/dívida, e de orientações da política monetária, perfazendo conjunto de opções que favoreceu “um considerável aumento do multiplicador de crédito, anulando-se o efeito de uma expansão mais moderada da massa monetária.” (p.29). Ao final, os papéis do Governo (ORTN, LTN e outros) acabaram por transformar-se em “instrumentos de captação da poupança privada, dando origem a um processo de endividamento crescente”. (p.30)

Sobre o aumento de reservas em dólar através do endividamento externo, tal opção não sinalizou, para Furtado, defesa alguma contra certos traços  históricos da economia brasileira, destacando-se a vulnerabilidade e a dependência externas. Concordo plenamente. Lembro-me de analisar, com alunos da UFRJ, a rápida multiplicação da dívida externa, entre 1968 e 1973, e anos seguintes. Chamava nossa atenção o fato de que a divida externa fora multiplicada de US$ 3 para US$ 12 bilhões, no curto espaço de quatro anos (1969/1973). De simples operação de captação de recursos para lastrear a moeda nacional, aquela operação viabilizou a formação de uma  dívida impagável. Juros sobre juros em parcelas impagáveis por falta de divisas. Em dólares! De fato, a multiplicação por seis da taxa de juros, durante a década de 1970, encurralou a economia brasileira.  

Em síntese, recapitulando a interpretação de Celso Furtado :

A partir dessa época [meados da década de 1970], as empresas estatais assumiram um papel de crescente importância na captação de recursos externos sob a forma de empréstimos em moeda, ampliando assim suas fontes de recursos. (...)  O brutal aumento das taxas de juros no mercado internacional, a partir de 1979, elevou os pagamentos líquidos de juros de US$ 2,7 bilhões, em 1978 (...)  para US$ 11 bilhões em 1982.  (p.40)

(...)

Duas observações de ordem geral se impõem(...)  A primeira diz respeito ao peso que o serviço da dívida representará para o País no futuro imediato. (...) A segunda observação concerne ao tratamento a dar à dívida existente.  As condições em que ela está sendo refinanciada atualmente são intoleráveis.  A lógica desse processo conduz o País inexoravelmente à bancarrota.  (p.45)

 

Nos parágrafos acima fica evidente um traço particular que distingue Celso  Furtado e o coloca em patamar superior. Refiro-me à sua capacidade de prospecção/previsão de eventos futuros.  Eu não conheço, entre brasileiros, outro economista que rivalize com Celso Furtado em atividades vinculadas ao planejamento de longo prazo.

Observei, em certa ocasião, que na França do pós-guerra, com De Gaule na Presidência da República, os integrantes do Conselho de Planejamento estavam convictos da da necessidade de perscrutar o futuro a partir de profunda análise do passado histórico. Em  “Le Plan , ou anti-hasard”, livro de autoria de Pierre Massé, presidente do Conselho, interpreta-se a atividade humana como uma aventura calculada, uma luta entre hasard (acaso) e antihasard, em particular no que diz respeito à aventura do século, isto é,  o desenvolvimento econômico e social. As molas de tão grande obra são (ou eram, para os franceses), a liberdade e a vontade dos homens. [3] Belíssima obra, que adornou o esforço heroico de uma nação em direção ao planejamento de longo prazo e democrático, pois consagrado pelos votos da Nação.

No Brasil, talvez este ano de 2023 e o próximo sejam um momento apropriado para ler e debater sem constrangimento algum, a obra inteira de Celso Furtado.  Ele foi um “maldito”, a partir do golpe de 1964. Até como ministro da Cultura, onde realizou um belíssimo trabalho, procuraram combatê-lo.  Razões ideológicas e, talvez, mais uma guerra por dominação do mercado brasileiro.

Deveríamos fazer,  pública e coletivamente,  este retorno às reflexões de nosso maior mestre em matéria de desenvolvimento econômico e social.  Nosso maior professor no campo da Economia Política do século XX. O principal intelectual brasileiro nas trincheiras de defesa da Soberania e do Estado Nacional. Quem sabe merecerá distinção similar à de outros grandes brasileiros que figuram nas medalhas de ouro e prata lançadas pelo  Banco do Brasil, desde 1932.

Rio de Janeiro, novembro de 2023. 

__________ 

* Economista, Mestre em Desenvolvimento e Planejamento, Doutora em Políticas Públicas com tese sobre o setor ferroviário no século XIX.  Integra o Conselho Deliberativo do CICEF e o Conselho Consultivo da CNTU. Coordenadora do Instituto Internacional de Direito, Economia, Desenvolvimento, Integração, Políticas Públicas e Inclusão Celso Furtado, do Núcleo de Pesquisa, Estudos e Atividades de Participação e Extensão à Sociedade da Academia Paulista de Direito, vinculado à Catedra San Tiago Dantas.

Agradeço a colaboração de Flavio Lyra nesse artigo, a ele devo uma leitura atenta e a crítica construtiva e competente. 

 



[1] Expressão minha esta “nova gramática”....

[2] P.24: Enquanto a dívida bruta subiu de US$ 3.344 milhões, em 1967,  para US$ 12.572 milhões, em 1973, as reservas de câmbio passaram, no mesmo período,  de US$  199 para US$ 6.417 milhões.

[3] Paris: Editions Gallimard, 1965. 

 






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