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Artigo | Schneider & Aquino | Descaso e desafios da agricultura familiar produtora de alimentos para o mercado interno no Brasil


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SCHNEIDER, Sergio; AQUINO, Joacir Rufino de.

Descaso e desafios da agricultura familiar produtora de alimentos para o mercado interno no Brasil. Instituto Fome Zero. (Site) Publicado em: 18 jul. 2022. Disponível em: https://ifz.org.br/descaso-e-desafios-da-agricultura-familiar/. Acesso em: 3 ago. 2022.

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Descaso e desafios da agricultura familiar produtora de alimentos para o mercado interno no Brasil

Sergio Schneider
UFRGS

Joacir Rufino de Aquino
UERN/CICEF

O Brasil é reconhecido internacionalmente por suas extensas lavouras de soja e fazendas criatórias de gado bovino. Mas no campo brasileiro não existem apenas grandes empreendimentos capitalistas dedicados à produção de commodities agropecuárias para exportação. Na verdade, a maioria dos estabelecimentos rurais do país é de agricultores familiares.

A agricultura familiar brasileira é formada por um contingente de produtores rurais bastante heterogêneo, congregando desde agricultores mais capitalizados até uma imensa parcela de pequenos produtores de baixa renda.

Segundo o último Censo Agropecuário do IBGE, a categoria abrange um universo de 3.897.408 estabelecimentos rurais. Juntos, eles representam 77% dos estabelecimentos agrícolas do país, ocupam mias de 10 milhões de pessoas (67% do total recenseado) e são responsáveis por parcela expressiva da oferta dos principais alimentos básicos que vão para a mesa dos brasileiros no dia a dia.

Ainda conforme o IBGE, os agricultores familiares respondem por 11% da produção de arroz, 42% do feijão preto, 70% da mandioca, 71% do pimentão e 45% do tomate. Na pecuária, o Censo revelou que eles produzem 64% do leite de vaca do país e concentram 31% do rebanho bovino nacional, 51% dos suínos e 46% das galinhas. Ou seja, o segmento é relevante para a segurança alimentar em face do que produz e da sua quantidade.

É importante registrar que a agricultura familiar nacional recebeu um significativo apoio do Estado nos primeiros 15 anos do século XXI. O conjunto de ações empreendidas, mesmo com alguns limites, fortaleceu o setor e contribuiu com o esforço integrado que ajudou o Brasil a sair do Mapa da Fome (2013/2014). No entanto, desde 2016, nota-se um processo de “desmantelamento” das políticas públicas de apoio à agricultura familiar e de desenvolvimento rural, com extinção de órgãos administrativos, cortes orçamentários, descontinuidade das ações realizadas, entre outros retrocessos.

A situação do segmento se agravou em 2020 com a deflagração da crise da COVID-19 que atingiu todos os setores da sociedade brasileira. Usando dados da PNAD-Covid, o professor Mauro DelGrossi, da UNB, estimou que 51% dos agricultores familiares tiveram quedas nas suas rendas. A queda de renda afetou a organização produtiva dos agricultores em todas as regiões e piorou os indicadores de insegurança alimentar do país.

O cenário apresentado, que sofreu poucas alterações em 2021 e nos primeiros meses do corrente ano, é agravado pelo descaso e pelas contradições da ação do governo federal brasileiro em relação à agricultura familiar produtora de alimentos para o mercado interno.

O descaso ficou evidente na insensibilidade do governo federal as iniciativas de apoio à categoria no contexto da crise sanitária recente. Isto porque medidas emergenciais propostas para apoiar a agricultura familiar no pico da pandemia foram simplesmente desprezadas. Basta dizer que os Projetos de Lei 735/2020 e 823/2021, que previam um conjunto de ações emergenciais e de médio prazo para proteger o segmento e potencializar suas atividades produtivas, foram esquartejados pelos vetos sucessivos presidenciais sem uma reação contundente do Congresso Nacional (https://revistaforum.com.br/politica/bolsonaro-veta-apoio-emergencial-a-agricultura-familiar/).

Já as contradições estão associadas, principalmente, ao viés produtivista da política agrícola nacional. O Plano Safra 2022/2023, por exemplo, apesar de prevê liberar R$ 53,6 bilhões para o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), manteve suas metas centradas nas cadeias produtivas de commodities de maior valor agregado. Esta opção política representa um grande contrassenso, uma vez que o programa deveria focar suas ações no apoio da produção agrícola para o mercado interno, algo que poderia ajudar a frear a inflação elevada dos preços de alimentos e a combater a fome (insegurança alimentar grave) que atinge mais de 33 milhões de brasileiros.

Com efeito, a baixa prioridade governamental à agricultura familiar produtora de alimentos para o mercado interno, exacerbada em 2019/2022, gera grandes prejuízos para o país e precisa ser enfrentada. Nesse sentido, é fundamental o avanço da luta dos movimentos sociais do campo em defesa da aprovação das medidas emergenciais e de apoio à produção de alimentos saudáveis (acesso a terra, água, crédito, assistência técnica etc.).

Além disso, outras frentes de lutas estratégicas precisam ser fortalecidas, entre elas a defesa pela inclusão digital e pela construção de mercados alimentares diversificados.

De fato, os temas apresentados acima são centrais. Por um lado, porque a pandemia acelerou os processos de digitalização das atividades produtivas e a exclusão digital na agricultura familiar é grave. Apenas para se ter uma ideia, tabulações especiais do já citado Censo do Agropecuário do IBGE mostraram que apenas 26% dos agricultores familiares brasileiros tinha acesso a internet em 2017, sendo que entre os mais pobres a falta de acesso a esta tecnologia da informação atingia 80% dos produtores.

Por outro lado, a questão dos mercados (inclusive dos chamados mercados digitais) é estratégica para agricultura familiar. Os agricultores precisam de mais e melhores mercados enraizados territorialmente. Logo, não se trata apenas de ampliar os canais convencionais de comercialização via redes de supermercados e/ou exportação. O desafio que está posto vai muito além e envolve o fortalecimento de cadeias curtas de alimentos saudáveis, que precisam estar lastreadas em modelos produtivos socialmente inclusivos e ambientalmente sustentáveis.

A construção de mercados que valorizem a produção da agricultura familiar, evidentemente, não poderá ser feita de forma individualizada. A organização coletiva dos atores sociais em cooperativas é um arranjo institucional imprescindível neste processo em tempos de digitalização acelerada das relações de troca. Aliás, esse é o tema central do livro inovador “Marcados Alimentares Digitais” lançado pela editora da UFRGS, que pode ser baixado gratuitamente e conta com uma rica coletânea de textos sobre o assunto (https://lume.ufrgs.br/handle/10183/231276).

Portanto, a situação da agricultura familiar brasileira em 2022 é bastante complexa. Ao lado de velhos problemas do passado, o descaso governamental com o segmento e a crise da COVID-19 trouxeram novos desafios que necessitam ser enfrentados urgentemente.

Em um país que necessita desesperadamente gerar empregos e combater os problemas da inflação e da insegurança alimentar, a contribuição dos agricultores familiares não pode ser desconsiderada nem negligenciada. Sendo assim, criar oportunidades para os agricultores familiares permanecerem no campo com uma vida digna, estimulando suas atividades produtivas e sua inserção em mais e melhores mercados, deve ser encarado como um dos projetos centrais para o Brasil na atual conjuntura e na sua reconstrução pós-pandemia.






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