Prof. Herminio Martins (Fonte: prof. Adelino Torres)
Faleceu no dia 19 de agosto, o sociólogo Hermínio Martins, da Universidade de Oxford. Ele é um dos autores do próximo livro o Centro Celso Furtado, “Brasil, sociedade em movimento”, que será lançado dia 6 de outubro, com organização de Pedro de Souza e parceria com a Editora Paz e Terra. Leia as notas escritas por Gabriel Cohn e Maria Angela D’Incao.
Hermínio Martins, o discreto grande mestre
Gabriel Cohn e Maria Angela D’Incao
Perdemos Hermínio Martins, levado pela morte tal como soube viver, de modo discreto, digno, deixando um legado que vai muito além do respeito devido a um grande intelectual: a perene recordação, no melhor sentido do termo, de amigos e colegas. A palavra sempre inteligente, o sorriso suave, a ironia sem maldade completarão, na memória de quem teve a ventura de conhece-lo, a oferta à sociedade de uma obra que assegura sua presença nas ciências sociais contemporâneas. Um belo testemunho sobre a figura de Hermínio é oferecido, aqui, por grande amiga sua, a socióloga Maria Ângela D’Incao, organizadora de volume de estudos em homenagem a ele, em vias de edição.
A título de sumária apresentação do pensamento recente de Hermínio, retomo em seguida anotações sobre livro de Hermínio publicado no Brasil em 2012 pela editora Fino Traço,
Experimentum Humanum, notável coleção de estudos sobre a ciência e a técnica no mundo contemporâneo.
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Um quarto de século de reflexão sobre ciência e técnica (ou tecnociência) e sociedade pelo ângulo da teoria social por um pensador de primeira linha encontram-se reunidos nesse volume. Nada de deslumbramento com o progresso técnico-científico, nem de “tecnofobia” (ou “ciênciafobia”), muito menos temor ao lado sombrio da conjunção desses dois termos, que antes andavam próximas, mas cada qual ao seu modo. Exercício de lucidez: ver o lado sombrio da coisa, não como perversão ou decadência e sim naquilo que tem de inteligível quando se consideram as grandes tendências da sociedade. Nisso Hermínio, para além das suas argutas incursões pela filosofia, se mostra visceralmente sociólogo.
Os estudos são independentes e escritos em momentos diferentes. Impressionam, contudo, pela consistência do conjunto. Algumas amarras temáticas, cujos fios percorrem o conjunto em vários registros, asseguram isso. Primeiro, a conjugação analítica de dois princípios fundamentais, detectados como eficazes na sociedade contemporânea. São eles o princípio da plenitude tecnológica (o que pode ser tecnicamente realizado deve sê-lo efetivamente) e o princípio de Vico (só conheço o que faço). As sutis modulações que essa conjugação de formulações permite são exploradas ao longo de todo o livro, e dão arrimo a um empreendimento crítico de primeira ordem. Depois, o passo complementar, no qual se traz à análise o núcleo duro da forma social contemporânea, qual seja, a efetiva universalização da mercantilização (ou “mercadorização”) de todas as dimensões da vida social (para não falar no efeitos disso na vida psíquica). É esse processo que permite amarrar aqueles dois princípios. (A exposição dessa forma – final? – de “cimento” da sociedade encontra sua mais cabal expressão no recente artigo, não recolhido no livro, na publicação digital portuguesa Nada).
Ainda que não de modo explícito, os textos procuram, cada qual ao seu modo, enfrentar um paradoxo, segundo o qual a ciência, ou tecnociência, que se expande e se faz presente em todos os desvãos da vida social, ganha cada vez mais um caráter autista, voltada para si mesma segundo uma lógica que lhe é própria e que não compartilha. Afinal, em nome do que operam aqueles dois princípios – o da plenitude e o de Vico, par não falar do da aceleração – , senão o da pronta e generalizada conversão de quaisquer produtos em mercadoria (incluindo-se nisso os atributos humanos, que afinal também são produtos capitalizáveis). Entretanto, o mercado não gera laços, mas generaliza as singularidades fechadas, “idiotas”. A demonstração dessa tendência ao “autismo” que a forma contemporânea da tecnociência cultiva é um dos pontos altos desse livro notável.
Herminio Martins: uma nota triste
Maria Angela D´Incao
Hermínio Martins nasceu em 19 de junho de 1934, na cidade de Lourenço Marques, em Moçambique, onde fez seus estudos. Órfão de pais muito cedo, foi criado pelos seus tios. Lutou contra a longa ditadura militar de Portugal com ideias e, impossibilitado de voltar a Portugal, em 1952 (quando conheceu Margaret, que se tornaria sua esposa), entrou na London School of Economics, em Londres. Foi na Inglaterra que teve professores como Karl Popper, Michael Oakeshott e Ernest Gellner e se licenciou, em Economia com especialização em Sociologia, com distinção. Foi professor nas Universidades de Leeds (1959-64), Essex (1964-71), Harvard (1966-67), Pennsylvania (1967-68) e Oxford (1971-2001), onde teve oportunidade de partilhar discussões com académicos como John Rex, Bryan Wilson, Peter Nettl, Jerry Ravetz, Talcott Parsons, John Rawls, David Riesman, Imre Lakatos, entre muitos outros. Passou à condição de Emeritus Fellow na Universidade de Oxford em 2001 e foi então convidado a ingressar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, onde é hoje Investigador Honorário.
Hermínio Martins, de pouco falar, exilado político por muitos anos na Inglaterra, acumulou belíssimos resultados de reflexão de suas leituras sem fim,que estão contidos em sua obra. Em uma sociedade onde o falar é positivamente uma regra para o intelectual, Martins acabou marcado pelo sentimento de exclusão que todo estrangeiro e exilado político acaba por cultivar. Ler, ler de tudo, sempre foi a condição de sua sobrevivência como intelectual.
Seus textos têm a marca da erudição densa, acumulada em sua vivência, muitas vezes solitária, crítica na universidade inglesa. Seus diálogos com as teorias são tantos e tão profundos quanto foram os anos de recolhimento político deste cientista social. Suas palavras escritas soariam como rajadas de metralhadora no silêncio da longa noite de exílio, não fossem a generosidade e a elegância com as quais o intelectual universal – português de Moçambique que estudou e teve sua carreira universitária na Inglaterra, com dois anos como jovem professor nos Estados Unidos – tratava seus interlocutores. Não seria destituído de sentido dizer que a solidão de Martins também se deveu à sua vasta leitura universal, muitas vezes não compartilhada por seus pares ingleses.
Desse modo, a leitura do conjunto de sua obra é fascinante porque tem a capacidade de desenhar, de informar ao leitor cada intenção da argumentação teórica colocada em questão. É elucidativa e, sobretudo, é referência essencial, porque se aprende onde estão as dificuldades e as falácias nos argumentos em grande parte da fundamentação de metodologias assumidas por nós sem maiores discussões, Esses ensaios trazem um exemplo de lucidez filosófica e sociológica em um momento da nossa história em que, ironicamente, uma incrível concepção metodológica baseada no corte radical com os desenvolvimentos precedentes propiciou a aceitação, quase universal, da chamada globalização, um processo que só foi possível por um desenvolvimento anterior, histórico, processual.
Assim, somente podemos chorar com sua morte em 19 de agosto deste ano em Oxford, ao lado de sua esposa Margaret Martins, seu filho Paul e esposa Christine e seu neto Daniel e a companheira Maria.
Ficam suas obras e seu amor pela humanidade e, nesse ponto, Herminio Martins será eterno a fazer a crítica competente às ideias "prometéicas" do neoliberalismo e revelar os objetivos sem fim dessa sociedade despregada da humanidade, na busca do poder infinito.