“Quando cheguei em Washington, em 2007, os BRICS não existiam. Essa aliança começou a se formar em 2008, por iniciativa da Rússia, cujo diretor no FMI procurou, para essa finalidade, os outros três países em desenvolvimento: Brasil, Índia e China. A África do Sul entrou para o grupo em 2011. A aliança foi crescendo, consolidou-se e culminou na Cúpula dos Líderes dos BRICS, em Fortaleza, com a criação de um banco de desenvolvimento e de um arranjo contingente de reservas (um novo fundo monetário). Mas os interesses não são econômicos e financeiros – embora os acordos tratem disso –, e sim políticos, com vistas à atuação conjunta no campo da governança internacional”, diz Nogueira.
Para o diretor do FMI, nenhum dos cinco países estava acostumado a uma coordenação inter-regional. Mas ele salientou que essa aliança “estranha” entre países tão distintos – dos pontos de vista histórico, étnico e cultural – deu-se porque esses países notaram que há um descompasso crescente entre a governança internacional e a realidade econômica global que começou a surgir no final do século 20. China, Rússia, Índia, Brasil e África do Sul são países que estão crescendo em importância relativa em termos econômicos, mas isso não se traduz numa mudança no quadro institucional e da arquitetura financeira internacional.
Ele reconhece que é comum que os processos econômicos corram à frente das mudanças institucionais e políticas. Mas esses descompassos tendem a gerar tensões mais ou menos graves, frustrações e descontentamentos. Paulo Nogueira Batista classificou a governança internacional atual como um “não-sistema” que não representa a realidade contemporânea.
“Esse não-sistema internacional é governado por um grupo formado pelos países que emergiram após a Segunda Guerra Mundial: de um lado os EUA, e do outro a União Europeia – incluindo os derrotados que se recuperam como Alemanha e Japão – o antigo G-7. Esses países criaram um arcabouço mundial que, no campo financeiro, se traduz em instituições sediadas em Washington, como o FMI e o Banco Mundial, que estão tendo dificuldades de se adaptarem aos novos tempos”, afirmou.
Ele observa que todos os BRICS participam desses organismos – FMI, Banco Mundial OMC, ONU – mas, no quadro atual, embora atuem ativamente, não sentem que a sua presença e seu poder decisório condizem com a mudança do peso relativo dos países. Nogueira Batista cita o exemplo do FMI e do Banco Mundial, nos quais o sistema de votação é tal que, quando as decisões são tomadas por maioria simples, basta se reunirem os EUA, a Europa e mais o Canadá e a Austrália para decidir.
“Em grande parte das decisões, eles podem nos atropelar e atropelam mesmo. Um exemplo é o caso da Ucrânia, onde foi votado um programa que não se sustentava. Não durou muito tempo e será completamente reformulado. As chances de que as vozes políticas sejam ouvidas são mínimas. Se o Banco Mundial decidir que determinado país não merece mais empréstimos, a coligação G-7 consegue impor essa decisão”, lamenta.
Nogueira Batista ressalva que isso não significa que os BRICS queiram romper com os acordos de Bretton Woods e sair dessas instituições. O fato de estarem tão empenhados em transformar o FMI e o Banco Mundial é um grande sinal da importância que atribuem às instituições multilaterais.
“Os BRICS só querem ter uma influência maior e mostrar que diferença fazem para o mundo. Vivemos um momento em que EUA e Europa perdem peso relativo, e esse processo de mudança foi acelerado pela crise de 2008. Eu tive a sorte de ir para Washington naquele momento de transição, e foi uma experiência muito rica, com a perda de peso relativo do G-7, especialmente no auge da crise em que a coordenação foi substituída pelo G-20”, recorda.
Ele diz que o ponto em comum entre os BRICS não é só o fato de que são países em desenvolvimento, mas especialmente porque são países de grande porte do ponto de vista geográfico e demográfico, e por isso têm capacidade de atuar com autonomia. Ele cita o caso do Brasil, que utilizou outros grupos como mecanismo de coordenação para fazer valer seus interesses, e não os países vizinhos latino-americanos que ou não têm autonomia ou não têm porte e engajamento suficiente com a economia internacional para não quererem “virar a mesa”.
“Os BRICS não querem conflito com o FMI ou com o Banco Mundial, nem ‘virar a mesa’. Eles querem participação, mas não encontram compreensão por parte dos EUA e da Europa. Os americanos, por exemplo, são tão orgulhosos que, mesmo quando comprometidos, têm muita dificuldade de atuar em conjunto. Eles estão habituados a atuar como eles próprios se definem: ‘como um país especial’” diverte-se Nogueira, que ressalta que os americanos estão com dificuldade de atuar internacionalmente, e que não está sendo fácil para eles acostumarem-se que não são mais o centro do mundo, embora ainda se portem como se o fossem.
“Os EUA não se acostumam com o fato de que não vivemos mais num mundo unipolar, que veio depois do fim da União Soviética. Aquele período passou e não vai voltar. A China será maior do que os EUA em termos absolutos, mesmo que demore a superá-lo em outros aspectos como PIB per capita e culturalmente”, reforçou Nogueira.
Esse foi o pano de fundo para o surgimento dos BRICS, que vivenciaram duas fases desde a sua criação como aliança política. A primeira, de 2008 a 2011, foi a etapa de coordenação com o G-20, o FMI e o Banco Mundial. Os primeiros encontros se deram mais regularmente com as cúpulas: o primeiro foi na Rússia, e o mais recente em Fortaleza, presidido pelo Brasil. Mas para Nogueira Batista, a fase mais interessante começou em 2012, quando na cúpula de Nova Deli, os BRICS decidiram estudar, por iniciativa da Índia, a criação de um banco de desenvolvimento. Poucos meses depois, na reunião de Los Cabos, no México, foi lançada a ideia de criação de um fundo, intitulado Arranjo Contingente de Reservas, uma espécie de Fundo Monetário dos BRICS, iniciativa sugerida pelo Brasil.
“Houve uma boa acolhida, mas foi um processo muito difícil para se chegar a um entendimento entre os cinco países e fazer algo que fosse sério e sólido, o que culminou, em Fortaleza, com a assinatura do tratado para a criação do banco dos BRICS e do Arranjo Contingente de Reservas. Não é fácil colocar em uma mesa de discussão cinco países soberanos, sem experiência de fazer mecanismos desse tipo”, afirmou Nogueira.
Nogueira Batista diz que o banco é menos inovador em termos de estrutura, mas será importante porque tem um potencial transformador se for bem trabalhado na sua fase de implementação. A relação entre essas duas iniciativas e as instituições de Bretton Woods é de ambivalência. Por um lado, elas foram criadas para atuar, quando necessário, de forma cooperada com o FMI e o Banco Mundial. Por outro, há uma relação de competição, uma tensão que reflete insatisfação.
“Se o FMI e o Banco Mundial estivessem funcionando bem, não precisaríamos nos dar ao trabalho de criar esses novos mecanismos. Fortaleza ficará para a história como o que Bretton Woods representou para o Banco Mundial e o FMI”, resume.
Nogueira Batista alertou, no entanto, que o processo está apenas começando. Os tratados foram assinados, e agora há o trabalho duro e menos charmoso de colocar as instituições para funcionar. O fundo monetário dos BRICS terá US$ 100 bilhões de recursos, dos quais US$ 41 bilhões colocados pela China, US$ 18 bilhões pelo Brasil, Índia e Rússia, cada um, e US$ 5 bilhões pela África do Sul.
Ele explica que foi difícil formular esse tratado porque havia poucas referências, a não ser os acordos bilaterais entre os bancos centrais e o FMI. Ocorre que o Arranjo Contingente de Reservas dos BRICS, além de ser menor do que o FMI, tem uma característica peculiar: são recursos virtuais que ficarão com os bancos centrais dos cinco países e só serão mobilizados se houver um pedido de um dos países, conforme estabelecido nas regras do tratado. Cada país tem um limite de acesso. O Brasil, por exemplo, pode pedir até US$ 18 bilhões, mas ao fazê-lo sai do pool de provedores potenciais de recursos e passa a ser um request partner.
Há ainda uma vinculação com o FMI, inspirada no acordo de Xangai, que envolve a China e dez outros países asiáticos. O acordo determina que para um país acessar mais de 30% do seu teto máximo, precisa recorrer a esse acordo vinculado ao FMI. “Tentamos encontrar um equilíbrio, porque não temos capacidade nem interesse de ficar impondo condições a um país que precisa de ajuda. Por isso fizemos essa vinculação. Trata-se de uma forma de terceirizar a supervisão. Pode ser que, no futuro, os BRICS evoluam para criar uma unidade própria, com sede, funcionários, produzindo relatórios. Mas ainda é cedo para isso”, diz Nogueira.
Ele informa que o Arranjo de Contingência de Reservas tem dois instrumentos: um preventivo e um de liquidez, que vai funcionar na base de swap de curto prazo. Trata-se de uma proposta cautelosa, feita com muito cuidado porque os países estão pisando num território que não conhecem. O único que tinha participação em um arranjo semelhante é a China. Brasil e Índia tinham acordos bilaterais de swaps, mas não tinham experiência em acordos multilaterais. A ideia é que esses países não precisem pedir apoio financeiro ao fundo, que terá um conselho de governadores em nível ministerial e um comitê operacional.
A atuação do fundo será baseada nas capitais, pelos bancos centrais e ministérios de finanças. A ideia é que o banco empreste a outros países em desenvolvimento e seja aberto à participação acionária de outros países não integrantes do BRICS. Além dos US$ 100 milhões autorizados, o banco terá uma capacidade de empréstimo ainda superior, haja vista que será considerado o fator alavancagem. Para os BRICS, o valor é de US$ 50 milhões, divididos igualmente entre os cinco membros. Portanto, o poder dos cinco é igual, embora os chineses quisessem que o poder de voto fosse proporcional ao tamanho econômico de cada país.
“É importante ressaltar que, embora a China tenha uma participação de 41% no Arranjo de Contingência de Reservas, quase todas as decisões são tomadas por consenso, exceto duas que são cruciais: a aprovação e a renovação de pedidos. Porém, nesses casos, a China não decide sozinha”, destaca Nogueira Batista. No caso do banco, os países insistiram para que a China não tivesse um peso maior. Após muitas discussões, a China se conformou, mas, em troca, exigiu que a sede fosse Xangai. Haverá também um escritório regional em Joanesburgo e outro no Brasil.
O novo banco terá um amplo rol de atuação e vai apoiar projetos públicos e privados com financiamentos, empréstimos e cofinanciamento com outros bancos, garantias e participação acionária. Além disso, será aberto à participação de outros países. “Antes mesmo da assinatura do tratado, os países do grupo que represento no FMI procuraram saber como podem participar”, informou Nogueira.
Cabe ressaltar que haverá duas modalidades de participação no fundo para países em desenvolvimento além dos BRICS: uma na condição de sócio, e outra na condição de não sócio. Os países avançados, por sua vez, também podem se tornar sócios do banco, mas não podem ser tomadores. Por precaução, estabeleceu-se que os BRICS não poderão ter menos de 55% do poder de voto, cabendo aos países desenvolvidos o máximo de 20% do poder de voto; e nenhum país não BRICS poderá ter mais de 7% dos votos.
O próximo passo a ser tomado pelos BRICS é ratificar os tratados assinados em Fortaleza. No caso de Brasil, Rússia e África do Sul, o acordo tem que passar pelo Parlamento. Há pela frente todo um processo de detalhamento operacional muito trabalhoso. Para Nogueira Batista, essa etapa precisa avançar rapidamente, para evitar que a demora permita àqueles que desejam travar o processo, começem a propor mudanças naquilo que já foi definido no tratado.
“Como integrante dos BRICS, o Brasil tem a oportunidade de mostrar a sua importância para o resto do mundo, uma vez que pode ter uma voz mais ativa na governança internacional”, defende Nogueira Batista.
* Paulo Nogueira Batista é economista formado pela PUC-Rio e mestre em História Econômica pela London School of Economics. É diretor executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) representando os seguintes países: Brasil, Cabo Verde, República Dominicana, Equador, Guiana, Haiti, Nicarágua, Panamá, Suriname, Timor Leste e Trindade e Tobago. Foi secretário do Ministério do Planejamento, assessor especial para assuntos de dívida externa do Ministério da Fazenda, chefe do Centro de Estudos Monetários e de Economia da FGV-RJ, professor e pesquisador da FGV-SP. É autor de várias publicações e artigos econômicos.
Deepak Nayyar abriu a sua conferência afirmando que o fenômeno da globalização na economia mundial, a partir de 1980, coincidiu com a propagação da democracia política em todos os países. Ele observou, no entanto, que ao longo do tempo as economias foram se tornando globais, porém, as políticas permaneceram nacionais. Ele também alertou que a relação entre a globalização e a democracia é dialética e que, portanto, não se conforma com “caricaturas ideológicas”.
De acordo com Deepak, a globalização – no que concerne ao campo econômico – se refere à expansão de transações e à organização de atividades através das fronteiras políticas dos Estados, e isso pode ser definido como um processo de crescimento associado a uma abertura comercial com aumento da interdependência e o aprofundamento da integração mundial. “Mas é preciso entender que a globalização é um fenômeno multidimensional. Suas implicações e consequências não estão confinadas apenas à economia, se estendem também, por exemplo, à dimensão política”, alerta.
Para Deepak, a globalização também apresenta forças e fraquezas no âmbito da democracia política dos países em desenvolvimento e nas economias em transição. Tal democracia política é baseada, principalmente, em processos eleitorais, ainda que alguns não tenham os direitos ou as liberdades políticas que a democracia deve assegurar a todos os cidadãos. De três décadas para cá, isso tem representado mudanças para regimes autoritários de países em desenvolvimento.
“A expansão geográfica da democracia atingiu Ásia, América Latina e África. É claro que as eleições nem sempre são livres e justas, e, apesar dos regimes autoritários terem sido banidos, ainda há muitos em plena atividade. Na maior parte dos países de regime autoritário ainda são crescentes as aspirações pela democracia”, salientou.
Para Deepak, não há dúvida de que as desigualdades sociais e econômicas exercem uma importante influência na qualidade da democracia, não apenas em cada país, individualmente, mas também entre os países, no âmbito da economia global. Ele argumenta que o direito de voto não garante que os cidadãos sejam iguais no contexto dos seus países, assim como não torna os países parceiros na economia mundial. Mesmo assim, é fundamental reconhecer a coexistência da tensão essencial entre mercados e democracia.
“Em uma economia de mercado, as pessoas votam com o seu dinheiro. O princípio subjacente é de um dólar, um voto. Já em uma democracia política, o que funciona é uma pessoa, um voto. A distribuição de votos, ao contrário da distribuição de renda ou bens, é igual. Um adulto tem direito a um voto na política, mesmo que uma pessoa rica tenha mais votos, em termos de poder de compra, no mercado”, explica Deepak.
Ele também observa que há uma assimetria relacionada entre economia e política que pode agravar ou contrariar tensões. “Aqueles que são excluídos pela economia de mercado são incluídos por políticas de democracia. Os ricos, por exemplo, podem dominar a economia de mercado com seus rendimentos e patrimônios; mas os pobres têm uma voz forte em uma democracia política, em termos de votos. Esse descompasso pode resultar em freios e contrapesos”, adverte.
Deepak observa que alguns atributos da globalização também reduzem o espaço para a democracia política. Ele explica que isso pode ocorrer por, pelo menos, três razões. Em primeiro lugar, as regras globais e os mercados financeiros exercem significativa influência sobre o que os governos podem ou não fazer em termos de políticas fiscal, monetária, comercial, industrial e cambial, sempre na busca de objetivos nacionais. Nesse sentido, as decisões econômicas nem sempre estão alinhadas aos interesses da sociedade.
Em segundo lugar, a prestação de contas – ou até mesmo a confiança – dos governos é dividida e se estende das fronteiras nacionais para regras multilaterais, corporações multinacionais e mercados financeiros internacionais. Para as economias vulneráveis, mesmo as agências de classificação de crédito tornam-se maiores que a vida real. E em terceiro lugar, a prestação de contas dos governos para aqueles que os elegeram e os quais representam é absolutamente corroída.
“No mundo ideal, a prestação de contas à sociedade é, por si só, uma prioridade. É evidente que os mercados e a globalização reduzem o espaço da política econômica para os Estados. Mesmo assim, existe uma certa diluição da política democrática em termos de objetivos a atingir pelos governos e sua responsabilidade para com as pessoas.
De acordo com Deepak, a grande questão é verificar se a democracia política no âmbito dos Estados pode de fato fornecer freios e contrapesos vis-à-vis os mercados e a globalização. “Trata-se de uma questão natural, que em geral não é abordada”, alerta.
Como solução, ele propõe a ampliação e o fortalecimento da democracia política por meio de tecnologias que permitem à sociedade o acesso à informação e à capacidade de se comunicar. “Essas tecnologias empoderam o cidadão e são propícias à mobilização política sobre questões de mercado e globalização”, concluiu.
Quando os economistas dão por resolvida a questão que relaciona mercado e democracia, Deepak Nayyar aponta para as tensões, contradições e a dialética entre os dois termos; um questionamento relevante, tendo em vista os rumos da economia mundial que tem ampliado o descrédito das sociedades com os governos e o desencanto com a
realpolitik.
* Deepak Nayyar é professor emérito da Universidade Jawaharlal Nehru, de Nova Deli. Lecionou em Oxford, onde se doutorou; em Sussex e na New School for Social Research, de Nova York. Integrou os quadros do World Institute for Development Economics Research de Helsinque (Finlândia), do South Centre em Genebra (Suiça), do Social Science Research Concil. Ocupou funções de governo na Índia. É autor, entre outros, de Trade and Globalization (2008), Liberalization and Development (2008) e A corrida pelo crescimento, seu primeiro livro publicado no Brasil.