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Dicionário temático: Desenvolvimento e Questão Social. 81 problemáticas contemporâneas.


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Dicionário Temático Desenvolvimento e Questão Social. 81 problemáticas contemporâneas.
Anete B. L. Ivo (coord.)
São Paulo: Ed. Anna Blume, 2014.
564 páginas

 

 

Dicionário Temático

 

APRESENTAÇÃO

 

O tema deste dicionário, Desenvolvimento e Questão Social, pela sua relevância e centralidade na compreensão da ordem social contemporânea, questiona permanentemente um regime de acumulação e crescimento, e as formas de integração social pelo trabalho, as condições de reprodução, proteção social e da cidadania. Nesse sentido, ultrapassa a perspectiva sistêmica e programática da ação governamental (expressa em planos, projetos e programas econômicos e sociais) ou as normativas das agências de desenvolvimento multilaterais para indagar-se, permanentemente, sobre as condições sociais de construção da política, as formas regulatórias da economia e os encaminhamentos da questão social. A construção política do desenvolvimento traz implícita, como contraponto crítico ao desenvolvimento econômico, uma demanda normativa de bem-estar e justiça social, que dialoga com a herança passada e as possibilidades do presente, de forma a orientar e explicitar as contradições que determinam a questão social do nosso tempo.

 

Como os dilemas contemporâneos do desenvolvimento dialogam com a herança política, social e econômica do país? Como o modo específico de as sociedades nacionais formularem projetos de desenvolvimento integra (mas também resiste aos) movimentos de hegemonia, no âmbito da ordem mundial? Como os “regimes de verdades”, que reafirmam as normativas das agências multilaterais, constituíram uma “comunidade epistêmica” que influencia opções dos governos em relação às políticas e aos direitos sociais? Qual o caráter inovador e quais as possibilidades específicas dessas políticas, do ponto de vista da seguridade econômica e do bem-estar social? Como a reconfiguração e os novos arranjos sociais e públicos de governança constroem possibilidades de inovação sobre os territórios? Qual a capacidade das ciências e dos saberes na recriação de condições efetivas de inovação e formulação de novos paradigmas de desenvolvimento e proteção social?

 

A noção de desenvolvimento aparece no horizonte da economia e da política e no campo das práticas dos atores políticos e institucionais no Pós-Segunda Guerra, como um mito fundador da nação que articula passado, presente e futuro da sociedade. À luz de um horizonte epistemológico da economia política associado a um projeto de modernização nacional pela via da industrialização e urbanização – o conhecido modelo de substituição de importações –, a noção de desenvolvimento é paradigmática do projeto de modernização nacional assentado no progresso técnico, no crescimento econômico e na revolução nacionalista brasileira. O projeto de desenvolvimento dos anos 1950-1960 atualizou o ideário iluminista do progresso nas formações sociais das sociedades latinoamericanas, tendo, no Estado nacional, um papel estratégico e protagonista na implementação da base técnica e produtiva, e em esforços para superar o poder e as ideologias tradicionais a serviço da melhoria da sociedade e do Estado, como “mudança provocada”, como formula Villas-Boas (2006).

 

Diferentes interpretações críticas da sociedade brasileira antecederam o pensamento “desenvolvimentista” da década de 1950-1960, ancorado num protagonismo do Estado nacional e num pacto fordista entre Estado nacional, burguesia e trabalhadores assalariados. A tradição das ciências sociais também buscava entender as contradições entre a tradição e a modernidade que impediam o projeto racional civilizador, no sentido de assimilação de atributos de uma sociedade orientada pelo triunfo da Razão e influenciada pelo “desejo do outro” europeu. A literatura sociológica brasileira, ao interpretar os óbices à modernização, buscou entender, na interface com outras disciplinas, como as relações sociais e políticas próprias ao sistema colonial impediam a plena adoção de atributos da sociedade capitalista. Essa preocupação inicial evolui numa crítica sobre a natureza do capitalismo em sociedades periféricas, o caráter da distribuição da produção socialmente produzida, as relações de dependência das sociedades latino-americanas em relação aos países centrais do desenvolvimento capitalista, o papel e emergência das novas classes em formação, a questão agrária, a migração, a questão urbana e de moradia, ou seja, inúmeros problemas e indagações que orientaram parte dos debates das décadas de 1960 e 1970. Contribuições relativas à teoria da dependência e à dualidade e funcionalidade da estrutura social periférica produziram críticas sobre as teses da modernização, do subdesenvolvimento e da marginalidade, reinterpretando a configuração do mercado de trabalho da perspectiva da formação do valor e o empobrecimento da classe trabalhadora, além de farto material de estudos sobre os processos de urbanização e industrialização nas sociedades latino-americanas.

 

Referências clássicas de autores brasileiros – como Joaquim Nabuco, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior, Guerreiro Ramos, Josué de Castro, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e, mais adiante, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Alberto Passos Guimarães, Milton Santos, Francisco de Oliveira, José Murilo de Carvalho, Paulo Singer, entre outros igualmente relevantes – produziram, de perspectivas distintas, a crítica sobre a natureza dessas mudanças sociais, a formação dessa sociedade e do seu povo, refletindo sobre os dilemas entre a modernização econômica e a cidadania. Como formula Faoro (1992), os limites da modernização estavam, em grande parte, na “modernidade possível”, resultante de um processo de mudança realizado pelo alto e pelas elites, cuja via de transição passou por formas de resistência e expansão dos direitos da cidadania.

 

Talvez esteja em Caio Prado Junior a síntese das principais contradições entre as instituições políticas coloniais e a estrutura socioeconômica do país, que fundam os principais dilemasda questão social brasileira, caracterizada pelo enorme contingente de trabalhadores empobrecidos e desprotegidos dos direitos sociais e por uma sociedade profundamente desigual,inclusive no âmbito institucional. Suas interpretações suscitaram amplo debate entre intelectuais brasileiros, na década de sessenta, quando o autor questiona a tese da revolução burguesa no Brasil, que implicaria superar os supostos traços “feudais” da sociedade colonial, enxergando, então, na burguesia nacional, o ator central do projeto de desenvolvimento brasileiro.

 

Não se pode refletir sobre o conceito de desenvolvimento em sociedades democráticas sem entender a dimensão necessariamente política da questão social. Portanto, assumimos que o processo de desenvolvimento confronta-se com a reprodução da questão social e as formas de luta e resistência da cidadania organizada. Essa é sua expressão mais crítica. Quer se trate dos mecanismos da redistribuição da renda, dos regimes de acumulação, das condições de inserção precarizadas dos trabalhadores no mercado de trabalho capitalista, dos níveis rebaixados de remuneração do valor do trabalho, das condições de proteção das famílias trabalhadoras, da seguridade alimentar, econômica, social e civil, ou do estatuto das políticas sociais de proteção e assistência, das dimensões da pobreza e das desigualdades de renda ou das desigualdades e diversidades socioculturais implícitas nas relações de gênero ou de geração e nas diversidades étnicas e raciais –, todos esses aspectos estão articulados com as opções de desenvolvimento e justiça social e expressam a dimensão eminentemente política e crítica das contradições do desenvolvimento entre as classes sociais, os direitos da cidadania sobre a reprodução e os bens públicos.

 

Nas décadas de setenta e oitenta, as lutas urbanas constituíram-se como movimentos de protestos e de demandas sociais por moradia, transporte, acesso à energia elétrica, à água e também frente ao custo de vida, expressões das condições de reprodução da vida das classes populares no meio urbano diante da urbanização acelerada. Os mecanismos de reprodução social da vida dessas classes populares, nos aglomerados urbanos, introduziam, portanto, duas dimensões: a do direito das classes populares à cidade, ou seja, à sua reprodução social e, ao mesmo tempo, a de sua legitimação social sobre o espaço (território) público da cidade. Nesse sentido, constituíram-se como movimentos transclassistas, constituindo-se em denominador comum dos conflitos resultantes da reprodução cotidiana dos trabalhadores.

 

A reorientação das políticas sociais nas décadas de 1990 e 2000 aprofundou a segmentação dos sistemas de proteção social, afetando particularmente os trabalhadores urbanos, situados entre uma elite econômica extremamente rica e uma prioridade da ação social dos governos orientada para o atendimento aos extremamente pobres. As contradições inerentes ao regime adotado eclodiram em amplas manifestações nas ruas das principais metrópoles brasileiras, em junho de 2013, indicando a necessidade de se repensarem as modalidades de desenvolvimento e de encaminhamento da questão social no Brasil, e ainda de entendimento sobre as novas formas da ação coletiva.

 

A ordem do mercado, no contexto de hegemonia liberal, parecia tolerável, quaisquer que fossem os custos sociais e morais de sua reprodução, e as “desigualdades econômicas e sociais”, em que pesem os discursos críticos e as ações voltadas para o seu enfrentamento, permanecem naturalizadas. O imperativo político da justiça social foi subordinado às operações de “eficacidade” e “produtividade” na distribuição de benefícios e apropriação dos bens públicos e naturais e, portanto, na “seletividade”, passando o valor da igualdade a ser considerado como um fim ilusório e utópico, em termos morais e políticos, ou entendido como um problema de ordem individual e meritório, o que aprofunda as disparidades em sociedades com estruturas sociais profundamente desiguais e com um contingente significativo de cidadãos submetidos à esfera da reprodução, no nível mínimo das necessidades.

 

Não se está diante de uma fatalidade histórica do mercado globalizado que determina o destino da sociedade brasileira ou de outras sociedades da América Latina e traça os limites para as políticas públicas nacionais ou locais. Pelo contrário, as possibilidades da transição socioeconômica e demográfica, mesmo no contexto da crise, significam uma abertura e um desafio para a inovação criadora da cidadania e da formação de alternativas possíveis, requalificadoras da vida e do trabalho. Se não bastassem os enigmas a serem decifrados pela imaginação criadora sobre o desenvolvimento brasileiro, a questão social, no Brasil no contexto presente, ainda reserva aos que a analisam a oportunidade de se defrontarem com caminhos sociais alternativos, postos pela própria cidadania em suas lutas. Questões estruturais relativas à precarização das relações sociais e de trabalho, a universalidade dos direitos ou a focalização, a justiça redistributiva, a espoliação de bens naturais e públicos, a preservação do meio ambiente, os meios da redistribuição da riqueza, a justiça fiscal, a aplicação dos Programas de Renda Básica, as novas formas da proteção social qualificada, a superação das desigualdades e a qualidade das políticas sociais universais de educação e saúde, a organização e direitos da cidadania, as novas coalizões de forças definidoras dos limites e caminhos do desenvolvimento do país, todas essas questões são um convite e uma abertura a esse debate.

 

Este dicionário é, portanto, uma obra aberta. Ela se caracteriza menos pela reconstituição de um saber fechado, pronto e acabado, e mais pelo exercício da construção de problemáticas transversais das ciências sociais, considerando especialmente as interseções da economia, da política, da sociedade e dos territórios, de diferentes perspectivas e portas de entrada. Com um total de 81 verbetes temáticos e mobilizando um conjunto de 84 autores, ele não tem a pretensão de cobrir todas as temáticas, mas privilegiar especialmente os grandes processos que delineiam inflexões na constituição das sociedades e na produção da política no passado e no presente: as mudanças relativas ao mundo do trabalho, as inflexões referentes aos sistemas de proteção social, as contradições relativas ao capitalismo financeiro no contexto contemporâneo, destacando tanto as formas de resistência e confronto, como as novas regulações sociais. A concepção do dicionário buscou incorporar contribuições de pesquisadores em diferentes estágios de amadurecimento intelectual, desde o pesquisador de alto reconhecimento acadêmico até os mais jovens pesquisadores que trazem resultados de seus estudos e teses na construção de um conhecimento no presente.

 

Com a preocupação de uma escrita acessível, cada verbete se inicia com a formulação de uma problemática, recupera um tratamento histórico e a polissemia que envolve a construção da temática. Fornece elementos sintéticos que se abrem a novas possibilidades do presente, num estímulo significante dos problemas tratados. As abordagens são necessariamente plurais, e cada autor responde individualmente pelas suas próprias perspectivas de análise. Esse foi um ponto de partida da construção deste dicionário: o de possibilitar diversas leituras na produção das dimensões do desenvolvimento e no encaminhamento da questão social, segundo diferentes entradas.

 

Cada verbete estabelece vínculos de significância com a vida política do presente, mas também com a produção de pesquisas do campo das ciências sociais, que traduzem e interpretam os processos contemporâneos. As questões selecionadas resultam de um duplo movimento: inicialmente, de um exercício conceitual e metodológico prévio na construção do campo temático interdisciplinar dos saberes implícitos às conexões entre os temas do desenvolvimento e da questão social, norteadores das escolhas; e, em seguida, de uma abertura para acolher autores que integram as redes de pesquisadores da equipe do projeto, propiciando um rico diálogo entre as diferentes áreas. O resultado final implicou um retorno reflexivo ao ponto de partida, na identificação de lacunas como possibilidade de abertura para novos caminhos e complementações, num esforço continuado de aprofundamento, sistematização e requalificação de uma agenda social sobre o desenvolvimento.

 

Assim, concebemos a construção deste dicionário como uma pequena contribuição das Ciências Sociais a “serviço do público”, disponibilizando e democratizando a produção acadêmica universitária à dimensão política e pública da sociedade, como sugere Bourdieu, e colocando o esforço reflexivo da comunidade acadêmica a serviço do seu tempo.

 

 

 

Anete B. L Ivo

Coordenadora do dicionário

 Fonte e mais informações: Editora Anna Blume

 






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