D'OLIVEIRA, Nelson V. Le Cocq; PATRÍCIO, Inês; GALVÃO, Antonio Carlos F.; MINEIRO, Adhemar; MACEDO, Mariano de Matos; LASTRES, Helena M. M.; FEITOSA, Cid Olival. (Orgs.). Carlos Lessa: passado e futuro do Brasil. Brasília: Fundação Perseu Abramo; Expressão Popular; ABED, 2023.
Escrevi este texto no dia 21 de outubro de 2022, nove dias antes do segundo turno da eleição presidencial. Registro a data porque é impossível falar de Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa sem que se refira a esses dias angustiantes da sua pátria tão amada. Se estivesse entre nós, buliçoso, alvoroçado como era, já teria feito mil agitações, ido às ruas, desfraldado bandeiras, espinafrado meio mundo da política, do jornalismo, da intelectualidade, enquadrado os vacilantes, resmungando por causa de certas adesões, confabulado milhões de vezes com Darc Costa. Mas, sobretudo, estaria sofrendo, o coração apertado, com mais esse transe vivido pela Nação Brasileira, afinal, poucos amaram com tanto fervor e intensidade este país quanto Carlos Lessa.
Além de um intelectual luminoso, um acadêmico reverenciado, um pensador e formulador genial, Lessa era um militante, desses de sair em passeatas, distribuir panfletos, frequentar assembleias, discursar. Ele tinha gosto pela agitação, nunca se omitia e jamais se permitia ficar à margem dos acontecimentos. Sim, se estivesse vivo, estaria agora, neste momento, completamente absorvido pela missão de, mais uma vez, contribuir para evitar o pior para seu idolatrado Brasil. E, nesses dias, senti uma falta danada do Lessa, de seu entusiasmo, de sua exuberância, de seu brado de luta e resistência. Ele nunca deixou de acreditar que um dia o Brasil libertar-se-ia dessa elite tacanha, intelectual e moralmente deplorável, colonizada, sabuja, escravocrata, perversa e tantos outros adjetivos com que ele indigitava as classes dominantes do país.
Então, neste momento, neste dia 21 de outubro de 2022, ele estaria a postos, aceso, na linha de frente da grande batalha pela sobrevivência nacional. Mas, que tragédia, que brutal e impiedosa fatalidade: a política de extermínio do genocida fez de Carlos Lessa mais um dos centenas de milhares de brasileiros abatidos pela Covid-19. Jamais esqueceremos, jamais perdoaremos, companheiro.
Conheci Carlos Lessa em 1986, quando era prefeito de Curitiba. Ele era diretor da recém-criada Área Social do BNDES, a quem recorri para me ajudar a viabilizar a Associação dos Meninos de Curitiba (Assoma), uma das primeiras instituições públicas nacionais a cuidar das crianças de rua. Vivíamos os primeiros anos da redemocratização e o poder público começava a voltar-se para os que haviam sido marginalizados pelo Estado, nas últimas décadas, incorporando-os às preocupações governamentais. Lessa, que brigara para que se desse às ações do Banco uma dimensão social, preconizando a adição do S à sigla da instituição, era agora um de seus diretores.
A nossa identificação foi instantânea. Conhecia e admirava o grande teórico do desenvolvimentismo de livros, artigos e entrevistas. Principalmente, conhecia-o como dos inspiradores e autores do antológico “Esperança e Mudança”, documento que a frente de oposição à ditadura, então reunida no PMDB, lançou em 1982. Para mim, até hoje, nenhum outro documento, nenhum outro programa partidário alcançou a abrangência, a profundidade e as raízes de nossos males quanto “Esperança e Mudança”. E nenhum outro apontou com tanta precisão e ciência os caminhos de nossa libertação. E lá está, na alma do documento, o Lessa por inteiro, profundamente antiliberal, radicalmente nacionalista, humano, terno, solidário, fraternal.
Depois do primeiro contato pessoal, em 1986, Lessa e eu nunca mais nos apartamos. Quando fui eleito governador, em 1990, quis que ele fosse o meu secretário de Planejamento. Ele gostou da ideia, mas outros compromissos atavam-no ao Rio de Janeiro, no entanto, vira e mexe, estávamos juntos, no Paraná, no Rio ou em Brasília, conspirando em favor do Brasil. O desenvolvimento nacional, a industrialização, a soberania incondicional sobre o nosso território e suas riquezas, especialmente o petróleo, a libertação de nosso povo da miséria, da ignorância, das doenças e da exploração, a defesa e o fortalecimento das empresas públicas como um dos pressupostos para a construção do Brasil Nação, o respeito às pessoas e a identificação com elas, eram os elos que nos aproximavam e nos envolviam.
O que diferenciava Lessa de outros notáveis intelectuais brasileiros era a sua proximidade com o povo, a facilidade com que transitava dos altos debates da política, das artes e da economia para a roda de samba. Amava seu povo e sua vida transformou-se em uma missão para dar ao seu povo dignidade, bem-estar e felicidade.
Foi essa profunda ligação com as camadas populares que levou Lessa a uma outra inusitada peleja: a reabilitação e a canonização do padre Cícero Romão. Por divergências com o Vaticano, o padre fora expulso da Igreja em 1891. Para Lessa, no entanto, o Padim do Juazeiro era a mais autêntica, pura e poderosa expressão da religiosidade popular. Lessa dizia que nenhum outro santo popular encarnara a brasilidade quanto Padre Cícero. Nessa briga para que se levantasse a excomunhão decretada pela Igreja Católica contra o Padim, havia também um sentido de penitência: o cardeal Arcoverde, que executara a decisão do Vaticano de anatematizar o santo sertanejo era tio-avô de Lessa.
Fomos juntos ao Vaticano para conversar com as autoridades da Congregação para a Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício, sobre a suspensão da punição. A reconciliação da Igreja com o Padre Cícero foi feita tempos depois pelo papa Francisco, abrindo assim o caminho para o reconhecimento do Padim como santo católico. As argumentações de Lessa para que o Vaticano levantasse a excomunhão eram implacáveis, não havia como contrapô-lo. Havia paixão e lógica em suas ponderações. E um Lessa apaixonado era um vulcão irrompendo-se.
Todos nós que comungávamos com Carlos Lessa os ideais da soberania e do desenvolvimento nacional vibramos com a indicação dele para a presidência do BNDES, em 2003, por Lula. Ao mesmo tempo, sabíamos que a sua permanência no cargo poderia ser breve. Não era para menos: no Ministério da Fazenda, estava Antônio Palocci, no Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), Luiz Fernando Furlan e, no Banco Central, Henrique Meireles. Um trio absolutamente avesso às teses desenvolvimentistas de Lessa. E quando foi demitido por se opor às diretrizes econômicas da troica, ele disse: “Nada de novo, afinal a imprensa já havia previsto minha saída umas 70 vezes”.
São algumas de minhas lembranças desse fantástico ser humano, um desses brasileiros que nos inspira e alenta para continuar na briga pela construção do Brasil Nação. Sou grato por ter conhecido, convivido e lutado com Lessa. Como ele era um otimista e nunca desistiu de sonhar com um Brasil soberano, desenvolvido, solidário e generoso para com os seus filhos, concluo manifestando a mesma fé no futuro, por piores que tenham sido ou sejam os dias de provação.
Viva Lessa, que Lessa viva eternamente em nossos corações.
Roberto Requião
Advogado, jornalista, urbanista e político brasileiro filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT). Pelo Paraná, foi governador por três mandatos, senador em duas ocasiões, secretário de Desenvolvimento Urbano durante o governo Alvaro Dias e deputado estadual, além de prefeito da capital Curitiba.