O perfil do voto em Bolsonaro
Por João Feres Junior
outubro 23, 2025

Desde 2018, o termo bolsonarismo tornou-se central no debate político e acadêmico brasileiro. Apesar da proliferação de estudos sobre o tema, ainda não há consenso sobre sua natureza. Este artigo propõe compreender o bolsonarismo a partir de dados sobre o comportamento político do eleitorado brasileiro, examinando as combinações de valores, crenças e atitudes que caracterizam o eleitorado de Jair Bolsonaro em 2022.

 

O que (não) sabemos sobre o bolsonarismo

Uma revisão sistemática da literatura acadêmica mostra o predomínio de três abordagens principais à compreensão do fenômeno: 1) bolsonarismo como discurso; 2) como fenômeno sociológico; e, 3) como fenômeno de opinião pública.

Na primeira vertente, autores como Rodrigo Nunes (2021, 2022), Esther Solano (2019, 2021) e Lynch & Cassimiro (2022) tratam o bolsonarismo como uma construção retórica ou ideológica. O foco recai na oferta discursiva — a emissão de mensagens —, geralmente sem examinar sistematicamente sua recepção por parte do eleitorado. Tais estudos atribuem coerência semântica ao bolsonarismo e o reduzem a um conjunto de narrativas reacionárias, moralistas e autoritárias. O problema é que explicam o sucesso eleitoral de Bolsonaro a partir da lógica interna dos discursos proferidos por Bolsonaro e seu grupo político, sem verificar se os eleitores realmente compartilham tais posições.

A segunda abordagem, de inspiração sociológica, analisa o bolsonarismo como fenômeno de identidade ou movimento social. Kalil (2018) descreve até 16 tipos de bolsonaristas, mas sem indicar quais são majoritários; Solano enfatiza disposições afetivas e ressentimentos, frequentemente recaindo no mesmo reducionismo linguístico das análises discursivas (Solano, 2019). Ambas tendem a confundir emissão e recepção, isto é, os discursos produzidos com as reações e adesões concretas dos eleitores.

Já a terceira vertente — bolsonarismo como fenômeno de opinião pública — examina o comportamento político mediante a análise de microdados de surveys, quase sempre empregando o método das regressões multivariadas (Nicolau, 2020; Amaral, 2020; Rennó, 2020; Russo et al., 2022). Esses estudos identificam correlações entre voto em Bolsonaro e variáveis sociodemográficas, ideológicas ou religiosas, mas pouco exploram como tais variáveis se combinam entre si. É nesse ponto que a análise de clusters se mostra mais informativa: ela permite captar perfis distintos de combinações de valores e atitudes entre os eleitores.

 

Metodologia

Utilizei a base do Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB 2022), conduzido pelo CESOP/Unicamp, com amostra nacional probabilística de 2.001 respondentes. O subconjunto de dados analisado compreende apenas os que declararam voto em Bolsonaro no primeiro turno, para evitar incluir eleitores anti-Lula de segunda rodada.

As variáveis selecionadas captam posições sobre temas morais, econômicos e políticos: casamento e adoção por casais gays, pena de morte, privatizações, cotas raciais, Bolsa Família, Auxílio Brasil, ensino religioso, porte de armas, aborto, militarização das escolas, justificativa de golpe militar e identidade evangélica. Todas foram recodificadas como dicotômicas (1 = posição conservadora). Para a análise, aplicou-se o método Partitioning Around Medoids (PAM) com distância de Gower, adequado a variáveis binárias. A escolha do número ótimo de clusters baseou-se no valor máximo da largura média de silhueta (silhouette width).

 

Resultados

O melhor ajuste foi obtido com k = 3 clusters, relativamente equilibrados em tamanho (cerca de 650 casos cada) e com boa separação interna (larguras médias de silhueta entre 0,17 e 0,36).

A tabela acima mostra a porcentagem dos respondentes que adotaram a posição conservadora no assunto em cada cluster. Podemos interpretar os clusters da seguinte maneira:

Cluster 1 — Liberal antipetista
O grupo mais coeso e numericamente expressivo (0,36 de silhueta) apresenta posições majoritariamente liberais em costumes e economia. São francamente favoráveis ao casamento gay e à adoção por casais homoafetivos e apoiam as cotas raciais. Apenas 15% são evangélicos, e cerca de dois terços defendem o controle de armas. Apoiam programas sociais e se opõem à pena de morte. O traço que os aproxima de Bolsonaro parece ser um antipetismo de origem moral e política, não um conservadorismo substantivo.

Cluster 2 — Militarista/punitivista
Com 69% favoráveis à pena de morte, 82% à militarização das escolas e 75% à justificativa de golpe militar por excesso de corrupção, esse grupo é autoritário e focado da questão da segurança pública. Todavia, também apoia políticas sociais e não é majoritariamente evangélico (18%). São também bastante favoráveis ao casamento gay e à adoção por casais homoafetivos, mas contrários às cotas raciais. Tal cluster representa um bolsonarismo de lei e ordem, avesso à criminalidade e ao caos institucional, mas não necessariamente reacionário nos costumes.

Cluster 3 — Evangélico moralista
O mais conservador em temas morais: 89% contrários ao casamento gay, 81% à adoção por casais homoafetivos, 62% favoráveis à prisão de mulheres que abortam. É o cluster mais religioso (63% evangélicos) e também francamente favorável à intervenção militar em caso de muita corrupção (74%). Paradoxalmente, apoia programas sociais e se opõe às privatizações, revelando uma combinação de conservadorismo moral e estatismo econômico.

O conjunto dos resultados refuta a noção de um bolsonarismo ideologicamente coeso. A análise mostra uma base eleitoral heterogênea, composta por (1) liberais antipetistas, (2) autoritários punitivistas e (3) moralistas evangélicos. Todos votaram em Bolsonaro, mas por razões distintas — valores, ressentimentos ou identificação simbólica.

 

Discussão

Os achados empíricos contradizem leituras que definem o bolsonarismo como populismo reacionário unificado. A diversidade interna do eleitorado bolsonarista evidencia que o sucesso eleitoral do ex-presidente não decorreu de uma ideologia coerente, mas de uma coalizão ad hoc de valores e motivações.

Assim, as explicações baseadas apenas na emissão discursiva (como em Nunes, Solano ou Lynch & Cassimiro) ignoram que a recepção das mensagens depende de predisposições distintas. O discurso “moral e patriótico” de Bolsonaro pode ser decodificado de maneiras divergentes por diferentes públicos — o que justifica observar o fenômeno pela ótica do comportamento político e não apenas da retórica.

Também devemos desconfiar da tese de que o bolsonarismo seria um neoliberalismo de massas: a adesão às privatizações é minoritária em todos os clusters (máximo de 44%), e o apoio ao Bolsa Família e ao Auxílio Brasil é majoritário. Ou seja, há mais continuidade que ruptura nas preferências econômicas dos eleitores.

 

Conclusões

A análise de clusters permite superar as limitações das abordagens ensaísticas e das regressões isoladas. Ao identificar padrões combinados de atitudes, o estudo revela que o bolsonarismo é menos um sistema ideológico e mais um conjunto de combinações de motivações que não apresentam necessariamente coerência interna ou entre elas.

O estudo do discurso bolsonarista ou do bolsonarismo como um movimento social são práticas acadêmicas válidas e factíveis. Só não podemos assumir que dão conta de explicar o sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro, que conseguiu arrebanhar aproximadamente 50 milhões de votos em duas eleições presidenciais seguidas, 2018 e 2022. A funcionamento de movimentos sociais interessa aos especialistas do estudo dos movimentos sociais, a lógica interna dos discursos bolsonaristas interessa àqueles que se dedicam à análise do discurso, mas a capacidade do bolsonarismo vencer eleições, ocupando governos e alterando o funcionamento das políticas públicas e serviços públicos interessa a praticamente todos os brasileiros, inclusive aos cientistas políticos que se dedicam a essa tarefa.

Por fim, o estudo sugere que futuros trabalhos devem explorar interações entre religião, gênero e valores punitivistas, bem como analisar séries temporais do ESEB para verificar se os perfis identificados se mantêm ou se transformam ao longo do tempo.

 


 

Referências

AMARAL, Oswaldo E. do. Bolsonaro e o novo conservadorismo brasileiro. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2020.

KALIL, Isabela. Entre o medo e a esperança: as manifestações pró-Bolsonaro em 2018. Revista Sociedade e Estado, v. 33, n. 3, p. 891-913, 2019.

LYNCH, Christian; CASSIMIRO, Paulo. Bolsonarismo e autoritarismo social: notas sobre a direita brasileira contemporânea. Revista de Ciências Sociais, v. 53, n. 1, p. 55-82, 2022.

NICOLAU, Jairo. O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

NUNES, Rodrigo. Nem vertical nem horizontal: uma teoria da organização política. São Paulo: Ubu, 2021.

NUNES, Rodrigo. Do transe à vertigem: ensaios sobre o bolsonarismo e um mundo em transição. São Paulo: Ubu, 2022.

RENNÓ, Lucio R. A crise da democracia e a ascensão da nova direita: explicando o voto em Jair Bolsonaro em 2018. Opinião Pública, v. 26, n. 1, p. 1-30, 2020.

RUSSO, Camila; RIBEIRO, Ednaldo; OLIVEIRA, Leandro. Religião, conservadorismo moral e voto em Bolsonaro: evidências do ESEB 2018. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 37, n. 2, e183451, 2022.

SOLANO, Esther. O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2019.

SOLANO, Esther. Brasil em transe: bolsonarismo, pandemia e democracia. São Paulo: Boitempo, 2021.

 


 

João Feres Junior é Professor Titular de Ciência Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP). E-mail: jferes@iesp.uerj.br