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O que é bom para os EUA não pode ser bom para o Brasil?


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BASTOS, Carlos Pinkusfeld.

O que é bom para os EUA não pode ser bom para o Brasil? Jornal dos Economistas, CORECON-RJ, Rio de Janeiro, n. 401, jan. 2023. Disponível em: https://www.corecon-rj.org.br/anexos/79581533A728857D7A7B7588E7D527D6.pdf. Acesso em: 23 dez. 2022.

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O que é bom para os EUA não pode ser bom para o Brasil?

 

Carlos Pinkusfeld Bastos
Professor do IE/UFRJ
Presidente do CICEF

 

Há mais de 6 anos, em julho de 2016, a convite deste Jornal dos Economistas (n. 324), discuti o projeto, ou carta de “intenções”, que o ainda vice-presidente Michel Temer apresentava à sociedade, justificando sua pretensão de tomar o posto da presidenta eleita, Dilma Rousseff. Como anotado então, o projeto, intitulado Ponte para o Futuro, era uma lista de propostas liberais que, como sempre, tinha na questão fiscal, ou o “ajuste das contas públicas”, o seu elemento central. Mas além deste quase mantra de qualquer programa de origem neoliberal, a Ponte para o Futuro também elencava as famosas reformas “estruturais”, que compreendiam maior abertura da economia, menor regulação dos mercados (com ênfase no de trabalho), redução do papel de empresas estatais produtivas ou financeiras e reforma da previdência. Num clima favorável, dado o impacto fortíssimo da Operação Lava Jato na crítica tanto da administração do Partido dos Trabalhadores quando da própria ordem política vigente, várias reformas radicais foram aprovadas por um verdadeiro rolo compressor no Congresso, sem que a sociedade pudesse fazer uma discussão mais aprofundada da natureza de seus impactos. O rolo compressor contou, é claro, com a inexistência do contraditório nos meios de comunicação corporativos. Assim, tivemos reforma trabalhista já no governo Temer e posteriormente a reforma da previdência no governo Bolsonaro. Também se avançou no desmembramento e venda de ativos da Petrobras, privatização da Eletrobras e enfraquecimento do papel do BNDES. Mas talvez a mais polêmica de todas as reformas, estabelecida no governo Temer, tenha sido o Teto de Gastos.

Desde 2015 o Brasil recuou 10 anos em sua renda per capita, apresentou a pior recuperação de toda sua história depois de uma forte queda do produto (entre 2015 e 2016) aumentou sua pobreza absoluta e voltou ao Mapa da Fome, do qual havia saído em 2014. Pior: teve um péssimo desempenho, não apenas em relação à nossa própria história, mas em relação ao mundo. Entre 2014 e 2020, o crescimento acumulado do PIB ficou em 175º lugar num total de 194 países.

Mas não são apenas números para lá de medíocres que marcam o período da Ponte para o Futuro. Também foram marcantes as rematadas mentiras que justificaram a adoção de tais políticas. Com o impeachment não vieram os supostos enormes investimentos externos e nem deu o ar da graça a “fada da confiança” para acelerar nosso crescimento, porque, afinal, os investimentos em nova capacidade produtiva respondem a oportunidades de negócios que então, em meio a uma forte depressão, simplesmente não existiam.

Outra das falácias do período, a de que o “dinheiro teria acabado”, acabou desmentida durante a pandemia, quando se expandiram fortemente o gasto público e a dívida pública.

A mentira do “acabou o dinheiro”, aliás, de alguma forma justificou o congelamento dos gastos públicos no valor de 2016, a Lei do Teto. Esta lei, aliás, criou um conceito de “responsabilidade fiscal” muito peculiar. Não mais se perseguiam metas para déficits públicos e/ou seus reflexos: a variação do endividamento público. Estes são indicadores, digamos, convencionais, dado que a expansão de gastos pode não elevar nem déficit nem dívida! Isto foi o que ocorreu nos governos Lula, quando o gasto cresceu a taxas anuais de acima de 5% em média, mantendo-se um superávit primário que na média esteve em torno de 2% do PIB. Em termos de evolução da dívida pública líquida, registrou-se uma redução do valor de 60,4% do PIB, herdado do governo FHC, para 38,2% em 2010.

A pergunta que, então, fica é por que mudaram as métricas de política fiscal anteriormente existentes para uma regra tão draconiana, única no planeta e que prejudicou o crescimento econômico?

Descontado algum erro crasso de política econômica, devemos buscar na economia política a explicação para tal escolha. Havia neste projeto uma clara intenção de redução tanto do tamanho do Estado como da provisão de bens públicos à população. Afinal, bens públicos beneficiam a cesta de consumo dos trabalhadores e a expansão de um Estado de bem-estar social tem como contrapartida histórica uma expansão da carga tributária e um aumento da sua progressividade. Logo, em nome da manutenção de privilégios históricos, não se pensou duas vezes em sacrificar desenvolvimento econômico e bem-estar social com uma lei tão equivocada.

E não se pode duvidar o quanto esta foi bem-sucedida – dados os seus objetivos, é claro. Em termos do valor executado, as despesas discricionárias em áreas sociais caíram quase 30% entre 2016 e 2021. Algumas reduções são particularmente gritantes, como 44% em Educação, 58% em Ciência e Tecnologia e 54% em Assistência Social. É de se perguntar: é possível construir um país minimamente moderno e igualitário com tais números?

Em dois turnos eleitorais, a população brasileira pareceu responder não a esta pergunta. Entretanto, os mesmos grupos que impuseram tal cenário de terra arrasada por 7 anos insistem em um terceiro turno, visando a travar eventuais mudanças de políticas para o próximo governo, um movimento em desacordo com a natureza do regime democrático, no qual processos econômica e socialmente fracassados são substituídos através do voto popular.

Neste sentido, outras vozes dissonantes do monótono coro da suposta responsabilidade fiscal do teto encontram pouco eco na imprensa corporativa. Entretanto, o debate deveria ir além de uma negação de uma regra absurda. Deveríamos estar pensando e discutindo como seremos capazes de dinamizar o crescimento econômico e inserir o país de forma mais virtuosa na economia mundial. Neste sentido, alguns documentos como a Carta de João Pessoa, do Cofecon, e o recente TD do Centro Celso Furtado, intitulado Serviços públicos como Vetores de bem-estar e reestruturação econômica, apontam caminhos que poderiam permitir uma aceleração do crescimento com maior equidade.

Para tal, o setor público e especialmente a provisão de bens públicos passariam a vetores centrais de um novo projeto de crescimento. Teriam papel importante tanto pelo lado da demanda agregada, num momento em que o mundo, ao menos no curto prazo, apresenta uma perspectiva de baixo crescimento, quanto por terem caráter estruturante em termos de formação de capacidades produtivas com importantes transbordamentos para o setor privado.

O que dizer então dos investimentos em educação e ciência e tecnologia? É inaceitável pensar em uma inserção internacional dinâmica através de um rebaixamento em dólar do valor da força de trabalho. Uma alternativa mais virtuosa seria alcançada com políticas industriais modernas, integradas às tendências de transição energética, nas quais a Petrobras e BNDES teriam papel central.

Este projeto nada de tem de exótico. É exatamente o que está sendo proposto pelo governo norte-americano. Não se busca um selo de aprovação no programa econômico do governo Biden, mas pelo menos sugere-se que supostos “exotismos heterodoxos” (sic) são hoje em dia muito mais populares do que supõe a vã filosofia de formadores de opinião locais. São muitos trilhões de dólares alocados em programas como o American Rescue Plan, American Jobs Plan e Biden-Harris Inflation Plan. São programas de benefícios sociais, como intervenção direta no preço de fármacos através do poder de compra do Estado, transição energética, recomposição da infraestrutura física do país e redução de benefícios fiscais a grandes corporações, entre outros.

Certamente as convulsões políticas recentes acenderam um sinal amarelo de que não é possível fazer políticas neoliberais para sempre. A retirada de direitos básicos da população e a falta de perspectivas de melhoria nas condições de vida, afinal, There Is No Alternative (tristemente famoso Tina), podem não ser aceitas de forma passiva pela população, gerando, em algum momento, um mal-estar que se transforma em reação irracional e, por vezes, turbulenta.

Logo, se alguém acredita no velho ditado, o que é bom para os EUA pode ser bom para o Brasil, também. Vale pensar até que ponto a repetição de velhas fórmulas, baseadas em bases teóricas e empíricas muito frágeis, não pode abrir o caminho à contestação, por uma extrema direita que cresce, da ordem política democrática cuja construção nos custou e custa tão caro e que ainda assim deixa à margem de uma existência, minimamente civilizada enorme parcela da nossa população. As propostas e apostas estão na mesa; o processo civilizatório também.

 






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